Os filhos e o Estado


Inverter o ciclo regressivo da nossa natalidade é seguramente uma das matérias com mais importância para consenso político e estabilidade temporal


Há quem assevere que a minha geração (a X, que nasceu até 1980) será a última que maioritariamente incorporou entre nós o projeto, familiar ou não, de assegurar descendência e irmanar a sua vida juntamente com a dos filhos e netos. Seguindo os cânones de evolução da cultura ocidental, os millennials seguintes (em especial, os mais avançados no ciclo temporal 1980-fim da década de 1990) parecem afastar-se não só da adoção de pressupostos familiares tradicionais como também desse modo de vida em que a natalidade possa ser vista como uma consequência natural da existência em comunidade. Olhamos para o lado e todos vemos e ouvimos. E compreendemos que a geração em que estão os nossos filhos e outros mais velhos (os centennials) olham para todas essas formulações com outra visão, com outra reserva e com outra mentalidade – adversas à sustentação da população autóctone e indiferentes aos reflexos das migrações.

A análise não é surpreendente. As duas últimas gerações compreendem o crescimento e a afirmação dos individualismos e das competitividades profissionais. Os afastamentos das ideologias sociais em nome dos materialismos comparativos, do triunfo das carreiras ou da mobilidade profissional e da generalização do consumo. A igualização de sexos e o abandono das dicotomias baseadas na diferença de sexo. O prolongamento da vivência com os pais até idades adultas avançadas e a separação precoce de casais sem tempo para a decisão parental.

A dificuldade de fortificação dos alicerces da classe média e da superação da pobreza nas oportunidades, nas expetativas, nos rendimentos e nas progressões. Claro que há hedonismos e comodismos vários que se enquadram que nem uma luva nos padrões de “civilização” atuais. Mas há muitos obstáculos que condicionam uma escolha favorável a converter fecundidade em natalidade. A incerteza a prazo dos trabalhos (e remunerações) e as despesas com uma educação polivalente dos filhos, assim como a conciliação entre compromissos familiares e resultados profissionais, estão sempre entre as razões mais referidas para não se ter mais do que um filho ou para se adiar até ao limite a opção filial. O certo é que nos conformamos com a quebra crescente dos nascimentos, como se não fosse um problema ou não fosse de todo um problema nosso. Com a natural desproporção em face do aumento da esperança média de vida e do envelhecimento (com qualidade de vida), coloca-se um problema de Estado e de políticas do Estado. Um problema que também é sobre demografia, envolve balanças de emigrantes e imigrantes, mas, acima de tudo, é de identidade e de possibilidade, de desafios ao Estado social e de sanação de dissensos entre gerações.

Perante o drama e o desafio, podemos reagir com impotência perante o efeito de contágio da omissão pessoal. Por muitos programas e leis que pudessem ter como móbil inverter o ciclo, um ciclo (ainda que moderadamente expansionista) da natalidade não se obteria de forma induzida. E a substituição do atual desequilíbrio geracional seria uma meta inverosímil. No entanto, podemos defender que as medidas do Estado podem romper essa fatalidade se forem oferecidas em pacote global. Podemos pensar numa alteração laboral, numa subvenção à parentalidade, num incentivo fiscal ou numa promoção habitacional. E se as juntássemos todas e as implantássemos em conjunto durante um período de tempo considerável e estável? E se fosse dada uma modelação para uma descendência média a atingir nesse período? Pois está tudo ligado com o emprego, a qualidade de vida, a aspiração social, a promoção dos recursos humanos, a realização da comunidade. Já seria tempo de os políticos que nos governam decidirem e darem resposta. Antes que seja tarde.

 

Professor de Direito da Universidade de Coimbra. Jurisconsulto

Escreve à quinta-feira