Camões e o 10 de Junho. Heróis do mar ou marinheiros náufragos?

Camões e o 10 de Junho. Heróis do mar ou marinheiros náufragos?


Muito embora o 25 de Abril tenha permitido a Camões alijar alguma da carga mítica que ao longo dos séculos acumulou, ele continua a ser para muitos portugueses uma figura de pedestal – acima e fora das dimensões comuns, um monumento nacional à mercê das vontades dos homens e dos pombos 


Na passagem de mais um 10 de Junho, cujas comemorações este ano viajaram até aos Estados Unidos, Portugal tornou a abrir o sarcófago de Camões, cujos restos mortais ninguém sabe ao certo onde param. 

Lá estava o cantor máximo das glórias de Portugal, esticado até ao limite da grandeza, semelhante a um desses bonecos de mola que saltam da caixa para dar génio às festas. Um olho aberto, outro fechado pelas lides da guerra, calções tufados, como novos. Louros na cabeça, como sempre, golas em renque a cingir-lhe os gorgomilos que não poucos dos seus contemporâneos terão (com boas razões) desejado apertar, e ainda um pouco zonzo de mais um ano de repouso. Mas – que remédio, os defuntos ainda não têm querer – pronto para os festejos que levam o seu nome. Disponível para ceder versos de ornamentar discursos, para ser admirado mesmo por aqueles que desconhecem quantos cantos tem a maior epopeia escrita em língua portuguesa (convenhamos que os tempos não estão para a leitura de poemas em dez cantos, cada um com uma centena ou mais de estâncias, cada uma delas com oitos versos). 

Pronto, enfim, para ser reduzido a meia dúzia de lugares-estafados, remastigados: os que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando, a austera, apagada e vil tristeza, a glória de mandar e a vã cobiça, coisas assim, que, arrancadas ao seu contexto, o banalizam até à náusea. Sensível como era às questões do mérito, talvez ainda não se tivesse recomposto de anteriores 10 de Junho, com as habituais condecorações a gritarem dos peitos lusitanos como couraças de grilos. E quantos se revelaram tão pouco ilustres. 

Este ano, tê-lo-ão encontrado com um ar visivelmente amargurado, esgotado deste papel ressequido de múmia que anualmente lhe cabe, esvaziado do seu significado e importância, da dimensão humana que Jorge de Sena lhe devolveu. No famoso poema “Camões na Ilha de Moçambique”, vamos dar com o poeta, desprovido de louros e aura épica, “num recanto em cócoras marinhas”, escandalosamente nu e numa desconcertante produção, ao alcance de um qualquer Luís – português comum, digno representante de um Portugal de carne e osso.

Galhofeiro, dado a golpes de humor, a zaragatas e à jogatina, por vezes desfalcado daquela nobreza a que sempre o associam, movendo-se, em vida, na contramão da oficialidade, sem regras, sem complacências (e sem mortalha para descer à terra – conseguida através de esmola), poucos poetas mereceriam menos este papel de figura de culto. E também a canonização à moda antiga que lhe ofereceram em 1880, no tricentenário da sua morte. Foi o ano em que pela primeira vez se evocou esta data, já a mitificação da figura do vate estava em curso, com importantes passos: a célebre edição de “Os Lusíadas” do Morgado de Mateus (1817), o poema “Camões” de Garrett (1825), o quadro de Sequeira (“A Morte de Camões”), o requiem de Bomtempo, a inauguração, em Lisboa, de uma estátua em sua honra (9 de Junho de 1967). Genial criador dos grandes mitos nacionais, Camões começava a ser, ele mesmo, um novo mito. 

A integração definitiva no imaginário nacional deu-se com as festas que em 1880 pretendiam fazer contrastar a empresa dos Descobrimentos, simbolizada em Camões, com a decadência do presente. Antero de Quental, menos otimista que Teófilo Braga, discordou: o próprio poema épico já fazia parte dessa decadência, na medida em que os grandes feitos portugueses representavam uma substancial parcela de responsabilidade na crise do país; um epitáfio, em boa verdade, e não um instrumento de regeneração. 

Por essa altura, o antigo capelão do Mosteiro de Santana preveniu o Governo: os ossos encontrados em 1854 pela comissão nomeada para exumar os restos do poeta não podiam ser os de Camões. Explicou, fundamentou. O certo é que a trasladação para o Mosteiro dos Jerónimos se deu na mesma. Estava-se às portas do cerimonial do 10 de Junho, a verdade era o menos e o defunto era o mais. É claro que o cortejo cívico – programa traçado à risca, desfile de símbolos pelas artérias da capital, chusma de caravelas em papelão dourado, fumarada de salvas, gente a rodo, delírio e propósitos republicanos encobertos – poderia, em todo caso, realizar-se, mas não era a mesma coisa. 

O autor d’ “Os Lusíadas” (parte apenas da sua obra) tem sido pau para toda a estratégia. E a sua epopeia breviário do patriotismo em todos os momentos difíceis da nossa história. Durante o período da ocupação espanhola, era leitura assídua em horas de cerco. Com o regime de Salazar foi utilizada como instrumento de propaganda colonialista. Houve até cartazes afixados nas paredes que aludiam à integridade territorial do império: “Não se podem rasgar as páginas imortais d’ Os Lusíadas”. Hoje, é um livro que quase ninguém já lê ou conhece. E Camões uma trivializada espécie de padroeiro nacional. 

São muitos os povos que se revêm nos seus grandes poetas: os italianos em Dante, os ingleses em Shakespeare, os Franceses em Molière ou os alemães em Goethe, mas como reconheceu Eduardo Lourenço, “nenhum deles é Dante, Shakespeare, Molière ou Goethe como nós somos Camões … só Camões”. E isto porque “Os Lusíadas” se converteram para nós, ao longo do tempo, na imagem mesma de Portugal. Mas convém talvez lembrar que “Os Lusíadas” são um painel triunfal de aventuras que abalaram o mundo, mas também um quadro sombrio de andanças em que nos perdemos. Que o poeta exalta as glórias do passado com a mesma força com que hasteia a mediocridade do presente, ignorando os protocolos da epopeia. Que nem sempre ficamos bem na fotografia. Por vezes, aparecemos como frouxos, imprudentes, desesperados, lambe-botas, gananciosos, corruptos, incultos … – o catálogo da triste figura poderia estender-se -, abusando das glórias conquistadas pelos nossos egrégios avós, supondo que elas bastam para nos justificarem a fraqueza, os vícios, as faltas. 

Como Portugal, Camões é, simultaneamente, caminho e impasse, rumo e desnorte, persistência e desânimo, realização e frustração, encontro e desencontro, obscuridade e descoberta, vontade de afirmação e desalento. Ei-lo, no canto VII, frustrado, cansado e receoso, inseguro diante da necessidade de ter de continuar caminho. No final desse canto, é bem visível a ação erosiva do tempo de escrita. 

Como Portugal, Camões regressa de África estropiado, vencedor e vencido, e da Índia deslumbrado, naufragado e esvaído pela miragem de uma Índia que, depois de descoberta, gerou aquele desemprego histórico de que fala Álvaro de Campos em “Opiário”: “Pertenço a um género de portugueses / Que depois de estar a Índia descoberta /Ficaram sem trabalho. A morte é certa.” Como Portugal, de todas as riquezas Camões volta pobre.