A cimeira de todas as incertezas

A cimeira de todas as incertezas


O líder americano quer arrumar as lições aborrecidas a um canto, ignorar os conselheiros e confiar no instinto.


Donald Trump vem recebendo há semanas pequenas pepitas da história e estratégia americana com o regime coreano sob a forma de sessões informativas diárias com conselheiros e analistas vindos do Departamento de Estado, Pentágono e da sua própria Casa Branca. O líder, porém, convencido de que os seus antecessores erraram em toda a linha no que diz respeito às relações com Pyongyang, diz em privado que será o instinto, e não a diplomacia da fina flor, que lhe permitirá triunfar na cimeira desta terça-feira com Kim Jong-un, em Singapura. Assim o afirmavam ontem à Reuters responsáveis americanos e assim parece indicar o último ano e meio da sua presidência. Ou seja: aquela que à partida seria já uma das mais arriscadas, importantes e imprevisíveis cimeiras de líderes do pós-Guerra Fria sê-lo-á mais ainda. Por muito que Trump tente nestes derradeiros dias dissipar as expectativas de uma reunião transformadora. «Acho que é uma reunião do género ‘vamos lá conhecer-nos’ e mais alguma coisa.», defendeu esta semana. «Nunca disse que a coisa ficava terminada só com uma reunião.»

Mas a cimeira, pelo simples facto de acontecer, já é transformadora. Durante décadas os três Kim desejaram encontrar-se com um Presidente norte-americano em funções. Desejavam o reconhecimento diplomático, acima de tudo, mas, em momentos de especial aperto económico, como o atual, desejam também corroer as sanções internacionais. Mesmo que Kim abandone Singapura sem um compromisso americano no sentido de aliviar os castigos de hoje, o jovem líder sai com o reconhecimento internacional que nenhum dos seus antecessores conseguiu. Ninguém conhece o jogo de Pyongyang, mas é possível que este esteja mais direcionado para Pequim, Seul e Moscovo do que para Washington. A campanha de «pressão máxima» depende do consenso internacional no campo das sanções e pode tombar por terra com uma simples «reunião do género ‘vamos lá conhecer-nos’». «Para a Coreia do Norte, é muito mais fácil que a China ou a Rússia cortem nas sanções que os Estados Unidos», argumenta Park Won-gon, da Universidade de Handong, na Coreia do Sul, ao Financial Times. «Mesmo que publicamente não acabem com as sanções, [esses países] podem facilitar ou ignorar a sua aplicação.»

Um encontro simpático e sem atribulações, como aqueles que o mundo vem observando entre Kim e o sul-coreano Moon Jae-in, não basta para Trump. O Presidente americano precisa de sair de Singapura com garantias preciosas da parte do regime norte-coreano. Quais? Há várias em cima da mesa. Pyongyang pode prometer limites ao seu programa nuclear e voltar a aceitar a entrada de inspetores nucleares no país. Pode também dar mais um passo na direção de um acordo de paz para a guerra de 1953 com a Coreia do Sul e Estados Unidos.Não se tratam de ofertas irrelevantes. Mas tão-pouco são ofertas novas. Kim Jong-il propôs precisamente o mesmo a Bill Clinton num acordo que acabou por ruir – beneficiando o regime pelo caminho. Apenas uma oferta norte-coreana interessa a Trump: uma garantia detalhada de desarmamento balístico e nuclear. «Se não conseguir mais nada e conseguir isso, será uma vitória», explica ao Guardian Robert Gallucci, um dos negociadores de Clinton com o regime de Pyongyang. «Se conseguir tudo o resto e não conseguir isso, será uma derrota.»

Moedas de troca

Muito está em aberto para terça-feira. E isso, consideram os americanos, é um problema. Trump aceitou por impulso um encontro que, de outra forma, teria sido negociado minuciosamente por especialistas e analistas, possivelmente ao cabo de vários meses, limando as arestas do que pode vir a revelar-se um acordo final, ou, pelo menos, sobre o que será discutido pelos dois líderes. O resultado é o que se espera para terça-feira:um encontro sem garantias escritas na pedra, mesmo considerando as vagas promessas coreanas de uma «desnuclearização» e apesar de o regime ter demolido ontem as suas instalações de ensaios balísticos e, há duas semanas, o local de testes nucleares. A verdade é que o Presidente americano violou a ordem natural da diplomacia ao aceitar um encontro sem garantias e violou-a uma segunda vez ao cancelar a cimeira. Na quinta-feira, o advogado mais visível – e problemático – do Presidente, Rudolph Giuliani, indicou que Trump está a jogar uma partida de xadrez complexa e que as reviravoltas dos últimos dias levaram Kim «a implorar de joelhos pela cimeira, que é a postura que se deseja dele». No entanto, é Trump quem agora dá um passo atrás, sugerindo que o desarmamento norte-coreano demorará anos e será faseado. Se é verdade que o regime quer um apaziguamento de fachada para obter um alívio nas sanções, é este género de declarações que Pyongyang deseja ouvir. 

A realidade, porém, é a de que ninguém sabe ao certo o que deseja o regime ou o que é que Kim considerará uma vitória à saída de Singapura. O jovem ditador – aos 34 anos, tem menos de metade da idade de Trump – pode receber cedências no que diz respeito aos ensaios militares anuais realizados em parceria com a Coreia do Sul. Também pode obter um entendimento de não agressão, ou um acordo favorável de ajudas económicas e humanitárias. Ou pode conseguir o que mais deseja a China, o seu grande pilar económico: a saída das tropas americanas da Coreia do Sul e Japão, o que muito preocupa Seul e Tóquio. Ou, o que parece ser mais provável, pode não querer nada mais que melhorar a mão que tem e aliviar os castigos sobre um país ao qual prometeu que nunca passaria pela fome que atravessou nos anos do seu pai e avô. Está já numa ótima posição para isso. «Trump está numa caixa», explica Victor Cha – ex-negociador de George W. Bush com a Coreia do Norte – ao New York Times. «Se isto não correr bem e ele quiser voltar às sanções, os sul-coreanos e chineses não o acompanharão.»