Muitos dos fantasmas do passado permanecem arrumados em armários das memórias, quais etapas da evolução civilizacional. Os que os viveram procuram relembrá-los para que não se repitam, os outros nem têm consciência prática da sua existência.
A escola pública universalizou-se nas quatro décadas de democracia, sem que se atingissem os equilíbrios em que o foco central fosse sempre o aluno, sem prejuízo do papel essencial dos educadores, das condições logísticas de ensino e dos restantes membros da comunidade educativa. A verdade é que as descontinuidades dos governos e das crises geraram um conjunto de bloqueios, desvios e desfoques que perturbam o cumprimento da missão fundamental: transmitir conhecimento, aditivar o processo de crescimento e preparar os alunos para os desafios das vidas complexas das sociedades modernas. O recente relatório do Instituto de Avaliação Educativa (IAVE) sublinha as dificuldades motoras das crianças, de posicionamento periférico e de agilidade mental, além do débito essencial das matérias memorizadas. Pensar é mais difícil. Com os dados da equação, com o alheamento de muitas famílias e com a influência digital, os resultados não poderiam ser diferentes.
Vem isto também a propósito da recente polémica sobre a não contabilização dos nove anos em que as carreiras dos professores estiveram congeladas (2005-2007 e 2011-2018). O problema é o de sempre, de expetativas criadas e da sustentabilidade das opções políticas.
A atual legislatura foi conduzida num quadro mental de reposição de direitos e de rendimentos que erradicou a ideia reiterada durante os tempos da troika de que os recursos ao dispor do Estado eram finitos. O dinheiro não chegava para tudo. Sem critério, consolidou-se a ideia de que a página da austeridade tinha sido virada e alimentou-se implícita e explicitamente a expetativa de que os passivos acumulados seriam superados a preceito e de acordo com a nova doutrina redistributiva. Mesmo com o vento da conjuntura de feição, era por demais evidente que, no quadro das obrigações internacionais ou mesmo à sua margem, não seria possível acorrer a todas as expetativas geradas. A paz social alcançada com os sindicatos alimentou–se das medidas concretizadas, do discurso político de valorização da escola pública e da expetativa de que o sol brilharia para os professores. No fundo, acabaria por “brilhar para todos nós”.
Era expetável que, apesar da navegação à vista, a solução governativa tivesse a perceção do caminho que estava a trilhar e de que uma qualquer contabilização dos anos congelados na educação implicaria similares reconhecimentos na saúde, na segurança, na defesa ou na função pública em geral. Gorado o 80 e rejeitado o 8, nem 8 nem 80, é o tempo da reguada. Se for como nos últimos três anos, dói mas passa. Se for como amiúde no passado, aditivado pelos ciclos eleitorais, implicará que os alunos, que deveriam ser o foco, paguem a fatura das expetativas goradas. Mau demais.
A menos que tudo não passe de uma manobra de diversão e de contenção de danos do governo perante o amplo caderno reivindicativo orçamental dos suportes da solução governativa. Centrada a atenção nos professores, o governo cederia qualquer coisinha e com essa atitude exauria a margem de manobra orçamental para aceder às reivindicações dos partidos amarrados à governação. Abriria a caixa de Pandora à medida da margem orçamental e assegurava o voto para o Orçamento de BE e PCP, que granjeariam agrado no nicho eleitoral dos professores. Persistiria sempre a questão: se chega para uns, qual é o critério para que não chegue para outros?
No fundo, o que se está a fazer com o tempo de carreira congelada dos professores é similar ao que o PSD está a tentar fazer com o perfil da sua governação no tempo da troika: é esquecer que existiu. Só pode ser esse o escopo de algumas das propostas que são feitas e dos aproveitamentos políticos de situações locais que resultam de passivos acumulados durante a sua governação. É assim na manutenção das infraestruturas rodoviárias e de outras realidades negativas que vão povoando as nossas vidas. Na educação, na saúde e em demasiadas questões relevantes para as pessoas e para os territórios, em que tardam opções de equilíbrio e de sustentabilidade das opções. É esta a fragilização do papel do Estado a que assistimos, apesar das loas à sua relevância e do apego doutrinário ao saco sem fundo.
Em nada disto é inteligível a propalada defesa da escola pública ou a sustentabilidade das opções políticas, mas é o caminho escolhido. Meio cábula, meio trapalhão. Como o retrato do estudo do IAVE.
NOTAS FINAIS
ORELHAS DE BURRO A conjuntura agita-se com demasiados fatores de perturbação para o burgo. Espanha, Itália, guerras comerciais. Será que se fez tudo para blindar a realidade o máximo possível?
IDA AO QUADRO A exigência da situação está à vista. Mesmo com o discurso de que tudo foi feito como nunca na prevenção e no dispositivo de combate aos incêndios florestais, a Autoridade Nacional de Proteção Civil registou, em maio, 2260 ocorrências de incêndios rurais, mais do triplo das registadas o ano passado (707) e cerca de seis vezes mais do que em 2016 (380).
DITADO O PSOE chegou ao poder. O que importa é chegar ao poder. Os fins voltaram a justificar os meios, mesmo que se fique nas mãos dos nacionalistas e de outros radicais. Cá como lá, só mesmo a degradação do poder em exercício parece legitimar a utilização de todas as margens do funcionamento das democracias. Cá como lá, é expetável que o povo, nas suas escolhas, tenda a reduzir as margens de discricionariedade e de tolerância. Alguns políticos já demonstraram que não são de confiança na gestão da representatividade.
Escreve à quinta-feira