Quando um congresso do PS é um passeio para um líder e o seu reduto mais próximo, isso significa que as hostes estão unidas em torno da manutenção do poder. Estar no governo ajuda e, desta feita, não houve exceção notória. Tanto mais que o partido está ciente de que não pode cometer os mesmos equívocos políticos e de comunicação que redundaram na derrota inesperada de 2015 e na consequente reviravolta da estratégia monopartidária. Passados três anos, as expetativas de ganho são mais elevadas e não podem ser desperdiçadas novamente. E esse sentimento transversal perpassa pelo partido e origina as mais consistentes condutas de proteção dos interesses mais imediatos: não colocar em causa a vitória (mais uma vez) anunciada e pedir, a seu tempo e delicadamente, a maioria. Atuar num estilo de vencedor antecipado não parece ser, por ora, tentação. O passado foi lição.
Ana Gomes, por muito que enfrente as discórdias quanto ao estilo e ao momento das intervenções, será a porta-estandarte do perigo fundamental para o objetivo. Rompeu no palco com o consenso desejado. É, na sua linha etária, a mais óbvia candidata à sucessão de Costa e está a fazer o seu caminho, mediático e endógeno. Terá sido dela – depois das antevisões das últimas semanas – o principal discurso do congresso, numa espécie de reconhecimento penitente dos erros do passado e num aviso quanto ao risco dos riscos: a altivez e o desprezo perante as situações investigadas e denunciadas de corrupção, influências negociadas, cruzamentos de interesses e incompatibilidades individuais. Sabe que, à esquerda e à direita, não podem ser desvalorizados os possíveis efeitos (centrais e colaterais) duma escalada de desconfiança sobre a idoneidade e a reputação dos homens-fortes do partido e do governo, mesmo que arrependidos e ignorantes. Se esses efeitos forem capitalizados pela máquina de poder que o PSD sempre terá, o perigo traduzir-se-á em fragilidades. Se a isso se acumulasse uma qualquer nova falência grave do Estado, tal teria consequências imprevisíveis no eleitorado. Logo, em primeiro lugar nas instâncias, poderia ser dramático que o governo e o partido não estivessem preparados para o que está para vir dos tribunais e desconsiderassem as reações que o país poderá ter. Ana Gomes sabe disso e prepara-se para ser a face visível desse combate interno e a solução externa para os descontentes (eventualmente direcionados a Rio e/ou a Cristas na dúvida ética, legal e política). Se correr mal, estará na primeira fila a recolher os despojos e a assumir outro programa para o partido – em princípio, mais ao centro e à direita.
Sabendo disso com a intuição que é seu padrão, Costa aposta na renovação geracional, a fim de retirar da loja os últimos companheiros do socratismo. Uma renovação pensada e gizada à esquerda, a fim de preparar uma transição consistente sem perdas significativas e com amparo do aparelho. Fala-se de um ou outro nome e aponta-se para a composição do novo secretariado nacional. Mas há muito para definir nesta “ala” que cresce na solução e nos acordos inventados e alimentados por Costa. Seja quanto a carisma, seja quanto a consistência, ainda falta muita definição contra a linha de Ana Gomes.
Assim sendo, temos um partido dividido (como esteve ostensivamente quando se convencionou com PCP e BE), mas sem que disso se dê conta nem disso se queira fazer alarde. Em nome do pragmatismo e dos resultados. Não obstante, uma divisão que certamente apenas espera pela oportunidade para se revelar.
Professor de Direito da Universidade de Coimbra. Jurisconsulto
Escreve à quinta-feira