Cancro infantil. Não, as dificuldades não se ficam pelo diagnóstico

Cancro infantil. Não, as dificuldades não se ficam pelo diagnóstico


Para as famílias que têm filhos com cancro, o diagnóstico é só início de uma longa guerra que não se trava apenas nos hospitais e muda a própria vida dos pais. Últimos dias em Lisboa da exposição que retrata as dificuldades das famílias com crianças apanhadas pela doença


Quando foi diagnosticado, Ivo tinha 20 meses: uma leucemia explicava o porquê de coxear há já algum tempo. Para grandes males, grandes remédios – o tratamento urgia e estendeu-se por dois anos, com sessões de quimioterapia endovenosa, quimioterapia oral e radioterapia. Ivo conseguiu superar a doença, mas os médicos decidiram que seria bom continuar a ser vigiado porque a hipótese de voltar era real. E não se enganaram. Oito meses depois de ter terminado os tratamentos, com quatro anos e meio, foi novamente apanhado na teia do cancro. Esteve em tratamento até julho de 2017.

Ivo, agora com oito anos, é uma das 20 crianças retratadas na exposição fotográfica “Na Minha Pele. Manifesto Pelos direitos em Oncologia Pediátrica” que ainda pode ser vista na Assembleia da República até dia 1 junho, antes de ir para o Porto. Organizada pela Acreditar – Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro e pela Liga Portuguesa Contra o Cancro, a ideia partiu de um grupo de pais e juntou dez crianças seguidas no IPO do Porto e dez no Hospital de São João. Mais do que despertar consciências para as dificuldades das famílias com filhos doentes oncológicos e pedir uma mudança, as pinturas nos rostos dos pequenos modelos – da autoria da artista Dora Fontana –, registadas pelo fotógrafo Miguel Pereira, lembram como nenhuma criança está livre de desenvolver a doença. Todos os anos, 400 crianças são diagnosticadas com cancro em Portugal. É a principal causa de morte por doença na infância.

Mudar a vida para ganhar a batalha O diagnóstico de Ivo traduziu-se numa mudança de 180 graus na vida da sua família. A mãe, Sónia, teve de pedir baixa para poder acompanhar o filho, mas o direito à licença remunerada é limitado a quatro anos – e Ivo esteve em tratamentos durante cerca de seis. Por isso, quando os quatro anos previstos na lei chegaram ao fim, Sónia viu-se obrigada a contornar a lei, como conta ao i.

“Ao fim dos quatro anos de baixa remunerada, as minhas hipóteses eram ou ir trabalhar ou ficar em casa sem receber. E ir trabalhar não dava, porque o Ivo precisava de mim. Consegui ficar em casa com o Ivo até ao fim dos tratamentos, mas tive de me sujeitar a pôr baixa por mim. De dois em dois meses ia às juntas médicas. Estive cerca de um ano e meio de baixa psiquiátrica”.

Do lado dos médicos, nem sempre foi recebida com compreensão. “Alguns compreendiam a minha situação, outros achavam que estava a enganar o sistema. E eu dizia que não, que tinha de contornar a lei porque a lei não prevê contextos como o do meu filho, que teve uma recaída e os quatro anos de baixa remunerada não chegaram”, continua.

Quando soube da doença, a família de Ivo, residente em Aveiro, viu-se obrigada a mudar-se para o Porto, para casa dos avós maternos. “Precisávamos de estar mais perto do IPO”, até porque viagens de carro de longa distância podiam ser prejudiciais para a criança. O pai conseguiu pedir transferência para o Porto e continuou a trabalhar. No final dos tratamentos, a família regressou a Aveiro. Agora, está “a retomar a normalidade. O Ivo está fazer uma vida normalíssima, apesar de ir à consulta todos os meses, para vigiar”, conta a mãe.

Sobreviver ao cancro com o ordenado mínimo Depois do diagnóstico, o leque de problemas que as famílias têm de enfrentar é variado. No final do ano passado, essa realidade ficou melhor retratada com um levantamento realizado pela Acreditar através de um inquérito às famílias, feito em todos os hospitais onde a associação – que apoiou 1365 famílias em 2017 – está presente.

A partir desse levantamento, recorda ao i Antonieta Reis do núcleo Norte da Acreditar, a associação foi à Assembleia da República “apresentar algumas propostas no sentido de ser feita alguma revisão na lei”. Entre as dificuldades, há umas mais recorrentes do que outras. É o caso do aumento das despesas mensais das famílias, estimado em cerca de 200 euros.

Vera, mãe de Eduardo – outro dos meninos retratados na exposição – conhece bem esse problema. “Tive de deixar de trabalhar para ficar com o Eduardo”, recorda ao i. A notícia da leucemia do filho chegou aos 15 meses, quando as manchas recorrentes no corpo levaram a família ao hospital. “O Eduardo foi ficando cada vez mais fraco e as análises mostraram o motivo”.

Ficou de baixa remunerada durante os quatro anos previstos na lei, mas quando esse período chegou ao fim, Eduardo estava internado numa cama de hospital e Vera não pôde voltar ao trabalho. “Durante quatro meses, vivemos só com o ordenado mínimo do meu marido. Temos mais um filho, com 16 anos, e tínhamos de pagar a renda da casa, despesas… Passámos um bocado de necessidades, mas tivemos muito apoio da família e amigos”. Mas viver assim não era possível, e Vera acabou por arranjar um trabalho noturno, enquanto o marido pediu para mudar para o turno da tarde no emprego – só assim conseguiram garantir que um deles estava sempre com o filho.

Desde o diagnóstico, não faltaram complicações. Eduardo, agora com nove anos, começou por ser seguido no Hospital de São João e depois passou para o IPO, onde fez tratamento de quimioterapia durante quatro meses e meio. Não foi suficiente e acabou por ser submetido a um transplante de medula óssea. Hoje, sofre de várias complicações pós-transplante. “Desenvolveu doença do enxerto contra o hospedeiro – que lhe afetou muito o fígado e os pulmões, em particular. É dependente de oxigénio 24 horas por dia e precisa de muita medicação. Por enquanto não consegue ir para a escola e tem aulas em casa. Ainda tem muitos problemas pela frente”, prevê a mãe, que reitera que a família tem “muitas despesas”.

Também Sónia, a mãe de Ivo, reconhece esse problema. “Além da medicação, são as compressas, é a alimentação que tem de passar a ser toda individualizada – pacotes de leite e águas pequenas, bolachas em pacotes individuais… E as crianças quando estão a fazer quimio enjoam várias coisas, por isso acabamos por ter de comprar vários tipos de coisas para testar. As máscaras, por exemplo, são super dispendiosas – uma caixa de 65 mascaras custa à volta de 60 euros. O Ivo, quando ia para a escola, sem exagero, gastava quatro por dia – são crianças, deixam cair, rebentam o elástico ao tirar do saco…”