Até um observador mais desatento não pode deixar de achar pitoresca a bonomia (provavelmente forçada e muito involuntária) que se consegue perceber na forma como uma certa elite política e um certo partido político (este apenas um pouco mais que os outros) olham para o Estado e sua organização, como se fosse a sala de visitas e o entretém dos seus amigos, em sua casa.
Perdido há muito o carácter relativamente majestático e institucional, no sentido de referência maior, digna da reverência dos seus administrados e verdadeiramente merecedora da presunção de ser uma pessoa de bem, para o actual estado de medo, da constante ameaça fiscal e do confisco, a verdade é que o conceito, a noção (ou o sentido) do e de Estado se abastardaram para níveis dignos das novelas do Gervásio Lobato.
Muito merecidamente, e segundo rezam as notícias recentes, muitos e variados indivíduos que representam toda uma “fornalha” – à razão média de cerca de dois por dia desde o início da legislatura – de cidadãos (e não falamos dos tais 50 que há cerca de uma semana têm o país refém dos seus importantes destinos) têm sido nomeados assessores para os gabinetes ministeriais e outros, ou seja, para o tal apetecível, informal e não escrutinado banquete do Orçamento acessível apenas aos ungidos.
O tal convite ao bodo orçamental – que, ao que parece, nesta data, já duplicou os números relativamente à legislatura anterior – nem sequer é original ou exclusivo deste governo, mas ganha, sem dúvida, relevância pela cumplicidade silenciosa dos abastardados e aburguesados antigos paladinos da ética na política.
Não obstante, os casos para a legislatura presente – em vários campos e perspectivas possíveis – não podem deixar de nos alarmar.
A profundidade do tema da nomeação da equipa Domingues para a CGD, a instrumentalização de procedimentos e as meias verdades e meias mentiras que geraram os famosos erros de percepção mútuos deram-nos o padrão da leviandade, superficialidade (e impreparação e ignorância) e tendência para a ficção com que se parte para a condução de importantes temas públicos e da fazenda do Estado.
Quem já esqueceu, também, a trapalhada que o PM criou com a instituição ou constituição perfeitamente informal e nepotística do seu confesso grande amigo (apesar de tudo, num género diferente do amigo de outro secretário-geral do PS) como advogado pro bono do Estado em vários processos (que, afinal, não era assim), passando depois a confessadamente avençado e, mais tarde, a administrador de uma das mesmas sociedades de que foi parte nas negociações.
Agora, este caso do novo ministro não é melhor. É outro, diz- -se, dos amigos de longa data do PM, é um jurista de renome e sem mácula conhecida e não merecia uma entrada tão desastrada ao mesmo exacto e costumado estilo que o torna, sem culpa, sujeito à polémica, e que é o fruto natural desta informalidade (impenitente, incompetente e sem memória) com que – ao que parece, todas – as recepções dos amigos do primeiro-ministro (entretanto também erigido, sem a merecida atenção do Bloco, à condição de hábil especulador imobiliário) são feitas, com esta mesma impreparação e desdém, deixando sempre uma qualquer ponta solta relativamente a quem vai ocupar cargos num ministério ou conselho de administração de empresa pública.
Sobram sempre, como vimos, estranhos casos de insuficiências procedimentais, violação de regras sobre incompatibilidades legais e suspeitas (senão merecidas, pelo menos verosímeis) de prováveis conflitos de interesses com situações anteriores e outras situações quejandas.
É exactamente esta cultura de informalidade e de fronteiras de linhas esfumadas e ténues de que o PM e o PS tanto gostam que corrói a percepção pública da actuação dos políticos e do Estado.
A forma como Ferro Rodrigues foi lesto a clamar por transparência no futebol e igualmente rápido a branquear o assalto ao cofre do orçamento das viagens pagas duas vezes e dos subsídios à família é outra faceta desta promiscuidade do relativismo moral que trocou a ética e a responsabilidade pública pela mera (e discutível) legalidade formal.
É, pois, neste cenário de impávida complacência e de diluição dos contornos do Estado e dos partidos, das amizades e dos nepotismos que entretanto nos encontramos, sem vermos tendência para sair ou melhorar.
Como costumadamente, com aquela inveja pacóvia e boçal que nos caracteriza e que endeusa os atrevidos, os comentários vão dividir-se nos blocos das clubites ou partidarites e das clivagens direita-esquerda, sem olharem para o difícil cerne da questão, que é reconhecer que, da direita à esquerda, quem compactua com isto da parte de quem quer que seja, porque outros alegadamente fizeram pior, não só padece de uma fortíssima falta de integridade pessoal e cívica como não merece mais nem melhor do que esta podridão que aplaude.
Advogado na norma8advogados
pf@norma8.pt
Escreve à quinta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990