O deputado Ascenso Simões fez parte do reduto íntimo de António Costa in illo tempore. Foi seu secretário de Estado e diretor de campanha nas legislativas de 2015, até ser obrigado a demitir-se em sequência da polémica dos cartazes. A partir de dada altura, os caminhos divergiram. Ascenso acha que a geringonça está esgotada e pensa que nas próximas eleições o PS deve pedir expressamente a maioria absoluta. O engraçado é que, sendo membro da ala direita do PS, afirma-se disponível para apoiar, na sucessão de Costa, o rosto da ala esquerda que está disponível para ser candidato a secretário-geral, Pedro Nuno Santos. Razão: acredita que Pedro Nuno acabará por se tornar um “moderado”.
Já escreveu que a geringonça está esgotada. Por que diz isso?
A situação política mudou completamente desde que se fez o acordo com Bloco e PCP. Foi uma solução que correspondeu ao tempo em que foi criada: as pessoas tinham saído do tempo duro da troika. Neste momento, o programa de mínimos está quase cumprido, foram devolvidos os rendimentos e conseguiu-se uma certa paz social. E há ainda o facto de a pessoa que unificava a geringonça, no sentido em que todos se opunham a ele, Pedro Passos Coelho, ter saído de cena. Agora precisamos de avançar mais rápido, de fazer reformas inadiáveis, na Justiça, na Saúde e na Educação, que muito dificilmente podem ser feitas com este Bloco e com o PCP.
E o PS sem maioria alia-se ao PSD?
Acho que o PS tem condições para ter uma maioria reforçada. Não sou favorável a alianças formais com o PSD, mas se não houver maioria absoluta são aconselháveis acordos pontuais no quadro parlamentar até com o CDS…
Quando diz maioria reforçada quer dizer maioria absoluta…
Sim. O PS deve pedir a maioria absoluta explicitamente. Sempre que a não pediu expressamente, como aconteceu com António Guterres naquele terrível empate de 1999, o partido saiu de gatas…
António Costa tem dito que o PS, mesmo com maioria, deve continuar a trabalhar com a sua esquerda…
É natural que o diga. Não é suposto que a ano e meio das eleições ande a descartar os parceiros que lhe permitiram a aprovação de três orçamentos. Não fica bem. E mesmo em qualquer outra situação importa não perder as relações de confiança que se criaram nestes últimos anos com a esquerda da esquerda.
Mas acha que António Costa quer mesmo a maioria absoluta?
Claro que quer a maioria absoluta!
Com parceiros que cederam tanto?
O PS cedeu incomensuravelmente mais. Já sabemos que o PCP, com a sua visão institucional, vai permitir o cumprimento da legislatura, mas depois não estará disponível para novos acordos que lhe reduzam o espaço. Veja o que aconteceu nas últimas autárquicas. Quanto ao BE, se tivesse feito o caminho para aceitar integrar um governo, ainda seria possível uma aliança. Alguns dirigentes do Bloco até o podem ambicionar, mas a liderança e os proclamadores “mortaguistas” não simpatizam com a ideia, militam contra ela em belas motas BMW.
A maioria absoluta é quase inatingível. Chegar aos 44% é muito difícil. Estamos a falar do homem que perdeu as eleições para Passos Coelho.
As eleições de 2015 foram complexas. Há várias explicações para o facto do PS ter ficado atrás do PSD. Uma foram as eleições internas que opuseram António Costa a António José Seguro. Isso deixou feridas muito profundas no partido que até eu não identificava. E depois não nos podemos esquecer do efeito danoso da intervenção externa, que estava ainda muito vivo na memória de toda a gente.
Acha que o PS perdeu as eleições de 2015 por causa de Sócrates?
Também. Votar PS a seguir à troika, junto de alguns sectores, significava voltar a um passado despesista a que, injustamente, o nome de Sócrates estava associado. Por isso, percebo muito bem que António Costa e Mário Centeno queiram baixar o défice a todo o vapor. Aliás, o objetivo para 2019 devia ser défice zero! É preciso acabar com a ideia de que o PS é o gastador, que não sabe governar controlando a despesa pública.
Défice zero não é muito de esquerda…
Desde quando é que a esquerda não pode ter boas contas?
Como vê o futuro do PS? Pedro Nuno Santos admitiu à Antena 1 que só lhe faltava ser secretário-geral do PS. É o sucessor de Costa?
Vejo o PS com Costa ainda por alguns anos. Mas depois assistiremos a uma liderança “pedronunista”. Eu detesto “ismos”, mas costumo dizer que o PS teve o soarismo, que construiu a democracia, depois o guterrismo, que fez o PS de governo e que deu origem ao socratismo e ao costismo. O futuro vai passar, tanto quando se pode prever em política, pelo pedronunismo, e será o tempo dos “pós Abril de 1974”.
Era capaz de apoiar Pedro Nuno Santos? Ele é muito mais à esquerda…
Claro que era capaz de apoiar Pedro Nuno Santos! É muito mais importante um moderado no meio de radicais que dão “pica”, do que num rebanho cheio de sábios moderados, de egos enormes e detentores da salvação. Direi que Nietzsche pensava em Pedro Nuno quando dizia “o homem precisa daquilo que em si há de pior se pretende alcançar o que nele existe de melhor”. O Pedro Nuno asseverar-se-á um moderado. Por outro lado, ele quer ser mesmo secretário-geral e isso é muito importante. A política só se faz com quem está disposto a dedicar-se 24 horas por dia a uma causa, a ver a sua vida exposta, incluindo os seus Porches. E, por enquanto, ele é o único da nova geração que parece disposto ao sacrifício pessoal e familiar. Eu também gostava que existissem outras correntes, como o “medinismo”, o “anacatarinasantismo”, o “perestrelismo” ou o “pedromarquismo”. Mas nem Medina, nem Ana Catarina, nem Perestrello ou Marques mostraram as ideias para o futuro e seria muito importante que as expusessem já neste congresso. Mas o único que está a defender o seu campo é Pedro Nuno.
Sobre a Ana Catarina…
Tenho pena que muita gente no PS só lhe permita ser a secretária-geral adjunta. Tem competências políticas enormes, até para liderar a lista ao Parlamento Europeu. Mas ela não se impõe, fica na retranca… Quem deveria ter elaborado a moção deveria ter sido ela, não permitindo que se consolide a ideia que o PS trata das palmas e o governo das ideias.
Portanto, Pedro Nuno pode mesmo ser o sucessor de António Costa?
Se tudo continuar como até agora, sim. Não sei se esta alteração sibilina que vai ser feita nos Estatutos, permitindo aos não militantes do partido votarem no secretário-geral, pode beneficiar Fernando Medina no futuro… Ah, e não nos podemos esquecer de Duarte Cordeiro, n.º 2 da Câmara de Lisboa, que tem imensas capacidades políticas e de organização.
Duarte Cordeiro é apoiante de Pedro Nuno Santos, assina a moção dele.
O “duartecordeirismo” é uma ala dentro do “pedronunismo”. Duarte Cordeiro é o único que pode ter no PS o papel decisivo e relevantíssimo que já teve Jorge Coelho – ser senhor todo-poderoso…
Mas como é que um socialista da ala direita admite apoiar um homem da ala esquerda que defende que o PS não deve esquecer o operariado, as classes mais vulneráveis?
O PS sempre foi um partido de classes médias, nunca teve esse discurso do operariado, essa é hoje a linguagem da esquerda arcaica e conservadora. Pedro Nuno, pela origem familiar sabe que são as classes médias, não os operariados, em velhas ou recentes formulações, que fazem avançar os países. Uma coisa que o Pedro Nuno tem de interessante é que ele conhece muito bem o país. Ele é de Aveiro, que é um dos distritos mais conservadores, onde a direita sempre teve grandes resultados e influência. E conhecer o país é decisivo num grande dirigente político. E, sinceramente, eu acredito que, conhecendo o país como conhece, é da natureza das coisas que se vá moldando à nossa realidade. Mas vamos ver o que acontece. Se a geringonça acabar mal, isso funciona contra ele. Se o PS tiver maioria absoluta, terá que esperar mais um bocado, mas beneficiá-lo-á… e não esqueça nunca que com Pedro Nuno nunca haveria uma discussão no PS sobre o comportamento ético quando à aquisição de uma vivenda por 600 mil euros…
Defende o PS moderado mas o único partido socialista, além do PS, que está a ter sucesso é o Partido Trabalhista liderado por Jeremy Corbyn…
Vejo que até as jornalistas relevantes desconhecem a política britânica. O Labour sempre foi completamente diferente do PS. Foi instrumento dos sindicatos, tem raízes operárias. O PS foi um partido feito pela aristocracia e burguesias republicanas. Deu mais valor à palavra liberdade do que à palavra igualdade.
Que reformas são essas que diz não poderem ser feitas com a geringonça?
Justiça, saúde e educação. Na educação precisamos de deixar de estar dependentes dos sindicatos e passarmos a estar focados nos alunos, nos pais e nos docentes. O nosso país fez um grande progresso, mas as exigências que se colocam na docência num tempo em que, pela primeira vez, as crianças sabem mais que os adultos em muitos universos, devem ser incorporadas nas dinâmicas internas das escolas.
Está a acusar o ministro de estar dependente dos sindicatos?
Quem acabou com a avaliação foi o ministro Nuno Crato, do governo PSD/CDS. O Tiago é grande ministro em condições dificílimas decorrentes da solução anacrónica de governo que temos. Mas a educação não tem que caber exclusivamente à escola da rede pública e pode, deve ter uma grande ligação à realidade da comunidade em que está.
E na saúde? Há falta de meios…
A saúde tem um orçamento compatível com as suas necessidades. O que verificamos no SNS é um problema grave de organização da rede e um difícil entendimento da estrutura de gestão. O SNS carece de quatro anos de estabilidade para se olhar para as necessidades do país e a elas responder tendo em conta as realidades territoriais.
Também falou da Justiça. O caso José Sócrates preocupa-o?
Preocupa muito. Independentemente das ideias que cada português já tem, das condenações que estão feitas na cabeça de cada cidadão, o país não pode assistir a anos e anos de investigação mantendo os acusados em lume brando. Como também não pode assistir aos recursos incessantes que levam a que, por exemplo, Armando Vara não tenha uma decisão final. Estou à vontade, sempre fui em passeio oposto ao de Vara, mas esta Justiça revela-se injusta.
Voltando ao PS, o que acha que Costa fará depois de ser primeiro-ministro?
Eu entendia que Costa deveria ser candidato presidencial em 2016. Ele sempre me disse que não queria. Eu sei que ele gosta de fazer coisas, de ver os puzzles crescer. Mas tudo vai depender de como vai sair da governação. Sabemos como entramos, mas nunca sabemos quando e como saímos. Eu, como seu amigo antes de tudo, gostava de o ver ainda num cargo internacional relevante antes de voltar para ser Presidente da Fundação Gulbenkian (risos)…