Após, na semana passada, termos observado a diferença na essência e nos fundamentos entre o arguido- -arrependido, que decorre das normas de atenuação geral e especial das penas consagradas nos artigos 71 a 73 do Código Penal, e a figura iminente do arguido-colaborador, com consagração especial nos crimes de branqueamento e corrupção ativa, bem como noutras leis penais extravagantes, e de termos percorrido a caracterização essencial do processo penal português quanto à sua dupla matriz, acusatória e inquisitória, não obstante o preceito constitucional consagrado no artigo 32 n.o 5, é momento de abordar a problemática do instituto da delação premiada de um ponto de vista ético-jurídico sobretudo quando alguns dos principais atores políticos nacionais – e, por conseguinte, legisladores ou seres com influência na esfera legislativa – abordam o tema não apenas de forma ligeira, julgo eu que por tendência mediática, mas de forma pouco clara quanto aos objetivos que pretendem prosseguir.
Razão teria o constitucionalista francês Robert Badinter ao afirmar que “um dos males da justiça é o frenesim legislativo. Há uma profunda deterioração da lei. Estamos a passar da democracia representativa para o que é chamado comummente de democracia de opinião. Esta última degenerou nos últimos tempos na democracia de emoção, particularmente no que à justiça concerne”.
Se é verdade que o direito penal e o direito processual penal atuam como sismógrafo da realidade constitucional, então é indispensável a interpretação dessa realidade como valores intrínsecos de uma sociedade democrática com poderes, ainda que solidários entre si, absolutamente distintos. É isso que, em parte, também decorre da própria Constituição e do princípio da lealdade consagrado no seu artigo 32 n.o 8. É certo que este princípio não traduz um princípio jurídico autónomo, mas antes um princípio moral garantístico, servindo para observar a conformidade da investigação e obtenção de provas com os direitos do cidadão e a própria dignidade da justiça. É, como refere Germano Marques da Silva, uma regra com “um valor hierárquico supraordinário”, e é também com base neste princípio moral, ou ético-jurídico, que se fundam as leis e os critérios da sua aplicação.
Mais: a ideia de um “negócio com a justiça”, considerando o tipo de crimes a que se sujeita, não só induz a ideia de que apenas está à disposição dos mais perigosos e dos mais fortes como também a de uma quebra de valores constitutivos de uma sociedade democrática, como são caso a solidariedade entre os seus membros, a sua igualdade na lei e perante a lei, já para não referir uma certa promoção do egoísmo, da traição e de um conjunto de comportamentos opostos ao preâmbulo constitucional português da “construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno”. Mas o direito premial pode violar igualmente o principio da igualdade promovendo uma desigualdade intencional e planeada constitutiva da sua lógica intrínseca, pois oferece ao arguido-colaborador um tratamento penal mais favorável, privilegia a alta criminalidade e, paradoxalmente, não assegura o usufruto deste benefício a todos os arguidos processuais, mas apenas àquele que primeiro mostrar intenção de colaborar, sob pena de o “arrependimento” coletivo atenuar ou extinguir a responsabilidade penal e, no limite, o processo.
A legitimidade da adoção de mecanismos premiais pela lei penal portuguesa deve ser alvo de uma demorada reflexão em que se deve tentar compreender qual a urgência e a necessidade de utilização destes mecanismos no combate à criminalidade organizada, e, por outro lado, que lesão poderão os institutos premiais causar ao Estado de direito democrático. Assusta-me que a generalidade da classe política se deixe tomar pela democracia de emoção sem promover uma reflexão séria entre si e com os principais agentes da realização da justiça. É verdade que o direito premial pode trazer eficácia no combate a um certo tipo de crimes, mas também é verdade que representa, sem a necessária reflexão, uma perigosa fissura nos pilares do Estado de direito democrático.
Deputado do PSD.
Docente universitário
Escreve à segunda-feira