Palestina. A catástrofe foi a enterrar com os mortos

Palestina. A catástrofe foi a enterrar com os mortos


As multidões evitaram ontem a Faixa de Gaza e ocuparam-se a enterrar os 60 mortos. Comunidade internacional pede investigação


Havia ontem muito que enterrar em Gaza e na Cisjordânia. Os 60 mortos de segunda, acima de tudo. Os que morreram ao fim da tarde com disparos na cabeça e os que não resistiram, de madrugada, às balas que levaram nas pernas e no ventre. Uma rapariga de 14 anos chamada Wesal Sheikh Khalil e uma bebé de oito meses que morreu asfixiada com gás lacrimogéneo.

Havia que sepultar, também, o luto que há todos os anos no Nakba, dia em que, há 70 anos, começaram as operações de expulsão e deslocação forçada dos 700 mil palestinianos que viviam nos territórios oferecidos ao recém-nascido Estado de Israel. Chamam-lhe “a catástrofe”. O início, dizem os povos palestinianos, de um vasto processo de limpeza e segregação étnica e religiosa que hoje sobrevive sob a forma de um cerco de 13 anos a Gaza, nas leis de apartheid da Cisjordânia, nos colonatos israelitas erguidos contra a lei internacional ou em dias como o de segunda-feira.

Os enterros tomaram ontem fôlego à Faixa de Gaza e a catástrofe de segunda-feira não se repetiu. Esperavam-se de novo dezenas de milhares de pessoas, como na segunda-feira, mas nos terrenos baldios apareceram apenas algumas centenas. Irados, sim, mas quase irrelevantes, à sétima semana de protestos. Lançaram pedras contra alvos impossivelmente distantes, queimaram pneus, vociferaram contra os soldados israelitas do lado de lá das camadas de arame que há anos tentam ultrapassar.

Um homem de 59 anos chegou-se demasiado próximo da vedação e foi abatido. Morreu porque violou as regras do governo israelita, que ontem insistia nada ter feito de mal na segunda-feira. Telavive não permite que os palestinianos se aproximem sequer da primeira vedação de arame, armados ou não. Considera-os invasores e terroristas. Porque são mobilizados ou incentivados pelo Hamas, o partido e grupo islamista que governa o enclave, a sua inocência está caducada.

“Só o Hamas é responsável pela perda de vida nos motins violentos na vedação de Gaza e Israel”, anunciaram ontem as Forças de Defesa de Israel. Segundo dizem, atiraram a matar contra “terroristas” que preparavam um “ataque com armas de fogo”. 

Somente os Estados Unidos davam ontem crédito a esta justificação. A ONUredobrou as críticas de segunda contra o governo israelita e voltou a afirmar que um dos mais bem treinados e equipados exércitos no mundo não pode atirar a matar contra pessoas desarmadas apenas porque elas se aproximam de uma vedação fronteiriça. A maioria dos jovens palestinianos que vão para a frente dos protestos estão desempregados e nunca puseram os pés fora de Gaza. Chegar à primeira vedação é tanto um sinal de desespero como de protesto. A sua vida está limitada a um domínio que mais se assemelha a uma prisão delapidada. A sua morte, não raras vezes, também. “Ela pensava que a morte era melhor que esta vida”, contava ontem a mãe de Wesal Sheikh Khalil, a rapariga de 14 anos abatida na segunda-feira. “Sempre que partia para os protestos rezava para se tornar mártir.” 

Israel encontrava-se ontem praticamente isolado na maré de condenação internacional. António Guterres, Emmanuel Macron e Theresa May criticaram duramente o governo nacionalista de Benjamin Netanyahu. O governo britânico recomendava ontem que se realizasse uma investigação independente e internacional às mortes de segunda, assim como o Kuwait, que convocou uma reunião do Conselho de Segurança das Nações Unidas, em Nova Iorque, onde a delegação palestiniana defendeu também uma investigação. Turquia e África do Sul ordenaram a expulsão dos embaixadores israelitas e Mahmoud Abbas, o líder da Autoridade Palestiniana, desferiu um novo rombo no casco quase submerso da paz israelo-palestiniana ao anunciar que abandonará o reconhecimento de Israel. Ontem, aliás, apenas os EUA se mantinham ao lado de Netanyahu e da retaliação de segunda–feira. É quanto basta para travar uma investigação no Conselho de Segurança, o mesmo órgão que a enviada americana abandonou ontem à noite no momento de a delegação palestiniana falar. “Nenhum país nesta câmara agiria com tanta contenção como Israel”, disse, antes de sair, Nikki Haley.