Hoje, se estiver a ler estas linhas na manhã em que o jornal i é distribuído, centenas de imigrantes dirigem-se para uma manifestação à frente da Assembleia da República. Ao lutarem pelas suas reivindicações, para fazerem valer o princípio de que, se trabalham e vivem em Portugal, têm o direito de ver legalizada a sua situação, estão a tomar a palavra numa sociedade que até agora os condenou ao silêncio e à invisibilidade, muitas vezes de uma forma violenta. Mais do que fazerem valer uma justa interpretação das leis portuguesas – que permite que quem cá trabalha e desconta para a Segurança Social possa ser legalizado -, eles estão a fazer algo mais importante: estão a agir e, dessa forma, a criar um poder constituinte de novos direitos de cidadania.
Aquilo que eles estão a fazer é o mesmo que os trabalhadores e as mulheres e os negros já fizeram durante séculos. Durante muitos anos, nem uns nem outros tiveram voz. A democracia nasceu na Grécia, mas desde o seu início que está minada pela ideia de exclusão. Na democracia grega, apenas os cidadãos podiam fazer valer a sua opinião. A maioria dos habitantes da Grécia eram metecos sem direitos.
No início da história das eleições em Portugal e no mundo ocidental, o voto era censitário. Só os homens ricos e proprietários podiam votar. Foi preciso lutar muitos anos, depois do fim da escravatura, para que os negros vissem reconhecido o direito a terem liberdade, poderem votar e até ser-lhes permitido sentar-se nos autocarros.
Foi precisa a luta da classe operária e das mulheres sufragistas para termos uma sociedade em que podem votar mulheres e todos os nacionais de um país. Foi precisa a luta de gerações para se conseguir o fim da escravatura e o reconhecimento dos direitos dos negros em muitos países.
Parecia um dia como outro qualquer, 1 de dezembro de 1955. Uma costureira de 42 anos sentou-se no autocarro nos lugares disponíveis para “gente de cor”. Na cidade de Montgomery, no estado do Alabama, a lei dizia explicitamente que quando os brancos não tivessem lugares sentados podiam obrigar os negros a levantar-se, e se o veículo estivesse muito cheio os negros podiam ser despejados para a rua.
Nesse dia, vários brancos entraram no autocarro e muitos negros levantaram-se dos seus lugares. Mas não todos. Rosa Parks recusou fazê-lo. “Estou cansada de ser tratada como uma pessoa de segunda classe”, disse ao condutor.
O funcionário chamou a polícia. A mulher foi presa por não aceitar ser tratada como escrava.
Nesse mesmo dia, os habitantes negros da cidade de Montgomery deixaram de andar de autocarro. São os pobres que viajam nos transportes públicos. São os pobres que trabalham por salários de miséria. São eles que criam a riqueza de cidades como Montgomery. E aí, no estado do Alabama, os pobres são quase todos negros. O boicote durou 381 dias. Setenta e cinco por cento dos passageiros dos autocarros, os negros, não cederam. No fim do seu protesto, o Supremo Tribunal dos EUA considerou ilegais as leis racistas do estado do Alabama que discriminavam os negros nos espaços públicos. No dia 21 de dezembro de 1956, o reverendo Martin Luther King e outros ativistas dos direitos cívicos foram os primeiros negros a viajar, como cidadãos iguais de direito, num autocarro da cidade de Montgomery.
Foi um ato que mudou a história. Rosa recusou levantar-se do banco do autocarro para dar lugar aos brancos. Foi presa, mas a sua recusa atiçou a revolta pelos direitos iguais. As coisas nunca mais foram as mesmas. Um só gesto fez toda a diferença. “Gostaria de ser lembrada como alguém que quis ser livre, para que os outros pudessem também ser livres”, disse Rosa Parks, a mulher negra que recusou vergar-se a regras que a escravizavam.
“Suplício de Estrangeiros e Fronteiras” é o nome de uma música do rapper Chullage. Como ninguém, ele consegue mostrar que a falta de direitos é o veneno que alimenta o preconceito e nos torna a todos menos livres. A letra vai voando, encontrando pessoas ligadas nas suas vidas miseráveis, em que o preconceito em relação ao que está ao lado é usado como forma de as manter num lugar de marginalidade e subalternidade social. A viagem começa com um ex-retornado que pensa: “Explorava imigrantes, na maioria budjurras/ Para ele continuavam a ser indígenas, pessoas burras/ Os anos foram passando, foram vindo mais imigrantes/ E a cada um que vinha pagava menos do que dava antes/ Muitos tinham, mas muitos não tinham papéis/ E a esses pagava menos e chantageava com as leis”; passa para o trabalhador negro dispensado porque já não há mais grandes obras de fachada e porque os trabalhadores de leste trabalham por metade do dinheiro, “Não recebia tão mal assim há mais de 15 anos/ Para ele, a culpa era desses filhos da puta ucranianos/ Um dia pedia 50 agora eles pediam 20/ O patrão disse se não quisesse para não vir no dia seguinte/ Mas já não havia estradas, estádios, metro p’a construir”; continua pela mulher crioula agredida pelo companheiro sem emprego. “Primeiro trabalhou interna, depois passou a mulher-a-dias/ Pelo meio criou os filhos da patroa como se fossem as suas crias/ O marido era macho, não queria que ela trabalhasse/ Mas ele não recebia bem, era preciso que ela ajudasse/ Saía de madrugada pr’o hospital onde limpava/ À tarde ia pr’a uma residência onde engomava/ Tratava dos filhos da patroa, limpava e cozinhava/ À noite chegava a casa, limpava e cozinhava/ E ainda pegava nos filhos, deitava e tratava”; e continua ainda com as desventuras do seu filho, que se sentia como peixe fora de água no seu país, que o tratava como um pária sem direitos.
Bruno era o que eles chamavam segunda geração/ Nascido em Portugal, verdiano no cartão/ Vivia nuns blocos de pedra lá p’o meio de um descampado/ Chamava-se realojamento mas ele sentia-se desalojado”, contam as rimas sobre Bruno, que acaba preso e deixado sozinho, apenas visitado pela prima e uma amiga. “Ela não se sentia rapariga, mas sim um rapaz/ E não era do Bruno, mas da prima dele que ela andava atrás/ Essas notícias lá em casa seriam uma coisa bombástica/ Ainda por cima o irmão tinha ingressado com uma cruz suástica/ Em casa era só guerras, já não havia sossego/ A mãe tinha adoecido e o pai ia perder o emprego”, assim prossegue a canção; com o pai obrigado a emigrar porque os patrões, escoltados pela polícia de choque, fecharam a fábrica onde tinha trabalhado durante anos.
A luta pelos imigrantes para terem direitos e afirmarem que quem cá vive, trabalha e até desconta durante muitos anos para a Segurança Social tem direito a cá residir legalmente é um combate justo e um primeiro passo para o reconhecimento de que toda a gente que cá vive tem de ser reconhecido como cidadão, com as mesmas liberdades e direitos de participação que são devidos a todos os seres humanos. Como cantava LBC (aka Flávio Almada), um dos dirigentes do Moinho da Juventude da Cova da Moura barbaramente torturados numa esquadra da PSP, “Nós k nasi omi k ta mori omi”: aqueles que nasceram seres humanos morrem seres humanos. O reconhecimento desses direitos devidos a todos os seres humanos liberta a nossa sociedade. As nossas péssimas condições de vida estão sustentadas pela ação ideológica de quem manda e lucra com a nossa divisão. Enquanto colaborarmos com a afirmação da discriminação dos mais pobres, dos que têm outra cor de pele, das mulheres e daqueles que, aparentemente, são diferentes de nós, estamos a ajudar a manter uma sociedade em que poucos ganham tudo e nós todos ficamos com as migalhas da vida.