Crónica do contributo para a morte do mercado de arrendamento


É evidente que o parque habitacional reedificado está caro. Cem anos das mesmas exactas medidas que a lei Roseta pretende expulsaram 50 mil habitantes e degradaram o número equivalente de fogos. É natural que a pouca oferta que recuperou não chegue para a procura que há


Enquanto embalamos para o Verão, ao contrário de vermos o espectro das novidades políticas desacelerar rumo ao estio, estamos antes a constatar que o nosso governo, a maioria que o apoia e algumas das figuras de referência que estes idolatram mundo fora nos exigem a maior das atenções e redobradas cautelas.

Nesta coluna já havíamos alertado para a desconfortável coincidência de, há dois anos a esta parte, as comemorações do 25 de Novembro terem deixado de ter carácter institucional na Assembleia da República e de que isso, pelo menos simbolicamente, não me parecia inocente.

Eis senão quando a deputada e edil arq.a Helena Roseta decide brindar-nos com a sua alegoria colectivista que gira na praça do novo PREC sob a sugestiva denominação de Lei de Bases da Habitação.

Para se perceber alguma coisa sobre o provável desastre, importa reflectir sobre o estado a que o parque habitacional do arrendamento, depois de mais de cem anos de vinculismo arrendatício, chegou, e que se reflecte exactamente nas repristinadas normas das prorrogações automáticas dos contratos, das rendas administrativas, e da eternização dos contratos. É necessário apontar que (num mercado não colectivista) estas exactas medidas destroem o mercado do arrendamento habitacional.

De tal forma assim foi que este governo PS (mas noutra legislatura), definindo o conteúdo pré-negociado da Lei Cristas, ajustou com a troika o compromisso internacional de: “6.1. O Governo apresentará medidas para alterar a nova Lei do Arrendamento Urbano, a Lei n.º 6/2006, a fim de garantir obrigações e direitos equilibrados de senhorios e inquilinos, tendo em conta os grupos mais vulneráveis. (…) Em particular, o plano de reforma introduzirá medidas destinadas a: i) ampliar as condições ao abrigo das quais pode ser efectuada a renegociação de arrendamentos habitacionais sem prazo, incluindo a limitação da possibilidade de transmissão do contrato para familiares em primeiro grau; ii) introduzir um enquadramento para aumentar o acesso das famílias à habitação, eliminando gradualmente os mecanismos de controlo de rendas, tendo em conta os grupos mais vulneráveis; iii) reduzir o pré-aviso de rescisão de arrendamento para os senhorios; iv) prever um procedimento de despejo extrajudicial por violação de contrato, com o objectivo de encurtar o prazo de despejo para três meses; e v) reforçar a utilização dos processos extrajudiciais existentes para acções de partilha de imóveis herdados.”

A responsabilidade internacional do mesmo, e a sua honradez no que se refere ao cumprimento dos contratos com as instituições internacionais, pode encontrar-se nesta aprovação de uma lei, já alterada e suspensa em parte, e que (em poucos anos) vem revogar o progresso que o mercado (que não é só Lisboa e Porto) estava a aproveitar.

Por outro lado, como convém a uma lei de bases da habitação, todos os seus pressupostos conhecidos parecem partir de princípios tão universais que a sua aplicação será discutível a todas as freguesias que não façam parte dos centros habitacionais de Lisboa e Porto, e, portanto terá a necessária abrangência, e capacidade, para combater um problema de habitação que não se põe para aí em 95% do restante país, e nos restantes 5% pode ser de duvidosa aplicabilidade se tivermos presente o que adiante se referirá.

É que importa ter presente duas questões. A primeira – que tem passado, muito convenientemente, ao lado do discurso oficial e que padece da mesma amnésia selectiva sobre quem negociou internacionalmente o conteúdo de tão “nefasta lei” – é que a mesma maioria e governo que dizem defender os inquilinos sem recursos são os tais que não provisionaram o fundo de protecção que defenderia, inquilinos e senhorios, da eventualidade da incapacidade económica de os inquilinos protegidos pela lei suportarem as novas rendas, como a lei efectivamente previa.

A segunda, e não menos relevante, é a necessidade de uma verdadeira e séria reflexão histórica sobre o arrendamento no centro da cidade e a reflexão sobre se efectivamente a mesma está a expulsar os “portugueses” do centro.

Conforme tive oportunidade de analisar já, nesta coluna, os números do arrendamento e dos habitantes na sequência dos últimos 50 anos de leis proteccionistas tiveram estes resultados nos números absolutos de moradores nos bairros históricos de Lisboa: no jornal “Público” de 20 de Agosto de 2001, revelando resultados do censo de 2001, o então presidente da Junta de Freguesia de São Nicolau, aí citado, referia relativamente a essa então maior freguesia da Baixa: “Em 1959 havia cerca de 40 mil habitantes e hoje não chegam aos dois mil.”

A evolução na década seguinte, até 2011, dizem os censos, permite concluir que a freguesia de São Nicolau tinha, em 2001, 1175 habitantes e em 2011 foram recenseados 1231, um crescimento efectivo de 4,77% que equivale a 56 pessoas, ou seja, cerca de 5% de quase nada!

No mesmo período, o Castelo perdeu 39,52% de habitantes; Sacramento, 15,68%; Santa Catarina, destas freguesias a mais populosa em 2001, perdeu 8,94%; a Sé, 21,55%; Santiago, 27,77%; São Cristóvão e São Lourenço, 16,81%; São Miguel, 13,84%; e Santo Estêvão, 26,18%.

Na tal década anterior a esta, refere o “Público”: “As freguesias que englobam estas duas zonas – Madalena, São Cristóvão, Santa Justa, Encarnação, Sacramento e Mártires – perderam mais de metade da sua população nos últimos 20 anos, passando de 15 500 habitantes em 1981 para cerca de 7200 em 2001”, acrescentando nós que os números em 2011 dão-nos poucos menos de 6 mil habitantes em 2011.

Não consta que 50 mil pessoas já tenham voltado a morar nesses bairros.

É evidente que o parque habitacional reedificado está caro. Cem anos das mesmas exactas medidas que a lei Roseta pretende expulsaram 50 mil habitantes e degradaram o número equivalente de fogos. É natural que a pouca oferta que recuperou não chegue para a procura que há. Mas também é natural que, com esta reacção estatizante, a mesma não cresça porque os proprietários não vão investir.

Aliás, seria o ponto alto da loucura colectivista da esquerda-caviar este de, depois das restrições generalizadas em serviços elementares como os transportes ou o SNS para cumprir metas do défice, vermos o governo a dotar fundos públicos de avultadas verbas para fazer habitação social e pagar indemnizações aos proprietários nos bairros de metro quadrado mais caro da cidade e das rendas mais altas, pervertendo mais o mercado e fazendo concorrência desleal com casas que não são suas, ocupadas ao bom estilo de 1975.

O mercado do arrendamento, a recuperação do edificado e quem precisa de casa não mereciam este retrocesso de 100 anos.

 

Advogado na norma8advogadospf@norma8.pt

Escreve à quinta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990