Num interrogatório judicial, mormente na fase de inquérito – por norma, reservada –, tende a estabelecer-se uma relação de confiança, mesmo que aparente ou simulada, entre o investigador e o investigado.
É dessa relação que pode resultar a utilidade de tal diligência.
Desvelar, sem acordo, um tal interrogatório na praça pública, mesmo que não afete os resultados já alcançados, origina que relações de confiança semelhantes dificilmente possam ocorrer em novos casos.
Tal desvelamento não consentido rompe, afinal, a indispensável confiança institucional que permite a relação entre investigadores, suspeitos, arguidos, testemunhas e advogados.
Desfaz as bases de confiança da relação estabelecida entre o Estado e o cidadão.
Colocando-se num patamar suprainstitucional – como juiz privado do interesse público –, os donos dos média, os editores e os próprios jornalistas assumem, de alguma maneira, a mesma atitude de alguns dos investigados: julgam-se acima da lei e comportam-se como tal.
Como aqueles, contribuem também, por isso, para promover a diluição da legitimidade democrática do legislador.
Numa democracia, o interesse público é o que a lei define e protege como tal.
Pode discutir-se tal definição, ou o seu alcance, mas, até à sua alteração, a lei deve ser respeitada.
Imagine-se o que sucederia se, em nome de uma interpretação particular do interesse público, cada um decidisse determinar qual a regra do Código da Estrada que deveria, ou não, respeitar.
Como já disse nestas páginas, a verdade judicial é apenas a que resulta do cumprimento rigoroso das normas processuais.
Foram precisos muitos séculos de aperfeiçoamento civilizacional para se chegar a um equilíbrio razoável dos diferentes valores e princípios humanistas que hão de permitir alcançar e justificar tal verdade.
A recente discussão pública sobre a transmissão televisiva de alguns interrogatórios judiciais, por não ter conseguido objetivar o que verdadeiramente está em causa, tem sido, a todos os níveis, inconsequente e mistificadora.
Que a lei foi violada, é ponto assente. Que a proibição de tais transmissões não impede o direito de informar, também.
Para obter uma verdade judicial legítima é necessário balizar o uso de certos dispositivos que questionam um conjunto de outros valores e princípios legais.
Para, precisamente, evitar o uso pernicioso do espetáculo mediático e televisivo teve também o legislador de ponderar e limitar o seu alcance: fê-lo, igualmente, em nome de princípios essenciais de civilização e do interesse público.
O que, com tal transmissão ilegal, deve ser questionado é, portanto, a cada vez mais frequente e afrontosa atitude de uns quantos interesses ante o Estado e a lei.
Aí reside a questão que importa discutir: a sujeição do Estado ante tal tipo de interesses e a sua efetiva vontade de os conjurar.
Quando, há pouco tempo, verberei a exibição pública – essa, legal – de uma deliberação just in time de um tribunal brasileiro, estava longe de pensar que iria, em breve, assistir em Portugal a um espetáculo ainda mais lamentável.
P. S. Na semana passada, a família Paulouro, porque considerou impossível manter a orientação original do “Jornal do Fundão” – órgão que fundou e, durante muitos anos, dirigiu com coragem, sentido de responsabilidade democrática e inegável qualidade –, abandonou com dignidade e publicamente a sua ligação a tal jornal.
A verdade é que se vão perdendo, aos poucos, as referências éticas que, durante muitos anos, mesmo durante a ditadura, deram voz a um jornalismo de referência e defensor do interesse público. A minha homenagem.
Escreve à terça-feira