1º de maio de 1974. Quando o povo esteve tão unido como nunca mais haveria de estar

1º de maio de 1974. Quando o povo esteve tão unido como nunca mais haveria de estar


Uma semana depois do 25 de abril, um povo ainda atordoado e feliz saiu em massa à rua para comemorar duas festas: a do 25 de abril, que tinha acabado com a ditadura, e a do Dia do Trabalhador, uma comemoração que o Estado Novo tinha banido. Mário Soares e Álvaro Cunhal estiveram pela primeira…


E o povo saiu à rua com a alegria que não costumava ter. Esta frase quase perfeita para definir aquilo que foi a euforia demencial do primeiro 1º de maio comemorado em Portugal depois de 48 anos de ditadura, é quase toda plagiada de um verso de uma canção de José Cid – “No dia em que o rei fez anos” – cantada pelos Green Windows no festival RTP da Canção desse ano de 1974, que se realizou pouco tempo antes do 25 de abril, a 7 de março, dia do aniversário da RTP. José Cid que se atravessou neste festival com duas músicas – “A Rosa que te Dei”, interpretada por ele – acabaria derrotado pelo “E Depois do Adeus”, de Paulo de Carvalho, que serviria de senha para a revolução. 

Mas José Cid, não tendo servido de senha, interpretou com antecedência o espírito do 1º de maio. O povo tinha saído à rua no 25 de abril, mas nem de perto com a expressão com que ocupou as ruas no primeiro 1º de maio que foi possível comemorar. As reportagens do arquivo da RTP mostram a dimensão da loucura que varreu Lisboa. 

Não era o rei que fazia anos, mas era um rei morto, posto em forma de uma ditadura acabada e uma urgência de festa. “E veio a gente da gleba/Mais a gente que vivia do mar/Para enfeitar a cidade/E abrir-lhe as portas de par em par”. Não era ao rei, era a liberdade. 

E o povo que saiu à rua com a alegria que não costumava ter trazia nas mãos cartazes, muitos cartazes. Uma semana depois do golpe de Estado que depôs a ditadura, o 1º de maio era a primeira grande manifestação depois de décadas em que o direito à “reunião” esteve proibido. Ao lado de cartazes sobre “o direito à greve” ou ao “salário mínimo nacional”, havia-os a pedir “o fim da guerra colonial”, “o direito de voto aos 18 anos”, o “julgamento público dos criminosos fascistas”. Havia saudações: “Bem-vindos os exilados.” Proclamações: “A poesia está na rua.” Alguma estava de certeza. “Não paguem o aumento dos telefones”, “Julgamento público dos criminosos fascistas”, “Demos à PIDE-DGS férias no Vietname” [que ainda estava em guerra, que só acabaria um ano depois].

Soares e Cunhal unidos Foi o primeiro e último dia do Trabalhador que Mário Soares, secretário-geral do Partido Socialista e Álvaro Cunhal, secretário-geral do Partido Comunista, festejaram juntos, lado a lado na mesma tribuna. Não estavam vestidos para nenhuma festa, o casual chic ainda não tinha entrado no meios políticos, eram outros tempos e Soares e Cunhal desempenhavam papéis institucionais decisivos ao tempo. Vieram praticamente vestidos de igual: os dois de fato cinzento e gravata preta. Cunhal de camisa branca, o historicamente friorento Soares com um pulover escuro por baixo do casaco. 

Soares discursa: “Camaradas, em 25 de abril as Forças Armadas destituíram o governo fascista e colonialista de Marcello Caetano. Mas foi hoje, foi aqui que nós destruímos o fascismo”. As massas gostaram de ouvir o secretário-geral do PS que tinha chegado a Lisboa, vindo do exílio em Paris, três dias antes. Cunhal, como se pode comprovar vendo as imagens da RTP, terá gostado menos de ouvir o futuro arqui-inimigo do que o povo. Ao lado de Soares, também de pé, Cunhal aplaude discretamente. Aquele é o momento de união pública, mas também de marcação discreta homem-a-homem. Mário Soares anuncia às massas, por outras palavras, que não quer que sejam os comunistas – os principais opositores organizados da ditadura – a tomar conta da revolução em marcha: “Essa vitória não é de ninguém, essa vitória é do povo português”. 

Mas Soares não deixa de elogiar o PCP, arrancando ovações à população reunida no Estádio rebatizado 1º de maio, em Alvalade: “Saúdo-vos a todos. Mas vocês permitam-me que me volte para Álvaro Cunhal.” As palmas interrompem o discurso. “E saúde o partido que foi incontestavelmente o partido que teve mais vítimas no fascismo.” Ovação. “Nós, socialistas, que também nos honramos de ter as nossas vítimas, não nos envergonhamos de dizer, pelo contrário, proclamamo-lo. E é para essas vítimas, algumas das quais eu tive a honra de defender, que eu me volto saudando o Partido Comunista Português.” Nova ovação.

Naquele dia 1º de maio de 1974, Mário Soares pediu o julgamento de Américo Tomás, Presidente da República deposto e de Marcello Caetano, primeiro-ministro afastado no 25 de abril. “Esses são os responsáveis, esses têm de ser julgados. Não por um tribunal plenário, que nós não somos desses. Têm de ser julgados por um tribunal comum e com todas as garantias de defesa. O fascismo foi vencido. Mas as bases sociais de suporte do fascismo continuam intactas.”

Soares defendeu que a tolerância e a generosidade deveriam prevalecer, diz não querer “represálias contra ninguém”, mas pede o julgamento dos antigos dirigentes. “Camaradas, é um escândalo que se peça a caça aos pides reles e que os Rapazotes e os Santos Juniores continuem em liberdade”. O povo grita “assassino” e Soares continua: “É um escândalo que esse velho e sinistro almirante Tomás, é um escândalo, camaradas, que esse hipócrita Caetano estejam a gozar as suas férias na Madeira”. O povo continua a gritar “assassinos”. 

Soares falou de improviso, Cunhal levou o discurso escrito. “Nestes dias deram-se passos gigantescos no sentido da democratização da vida nacional”, diz Cunhal, “mas o perigo da reação fascista, o perigo da contrarrevolução existe. Apesar de que ninguém mais do que nós, os comunistas, sofreu a repressão fascista, muitos com sangue, a liberdade e a vida, não nos anima o espírito de vingança.” Mas, adverte, “devem assegurar-se todas as medidas necessárias a que os fascistas não voltem ao poder.”

O secretário-geral dos comunistas faz um “apelo para um reforço da vigilância das massas populares em relação às atividades, às conspirações e às provocações daqueles que procuram na sombra reconduzir a nossa pátria à tirania”. Repete várias vezes a palavra “unidade” e anuncia que a vitória verdadeira só chegará com “a unidade e a rápida ampliação e reforço da classe operária, das massas populares, das forças democráticas”. As massas populares presentes no Estádio do INATEL aplaudem fervorosamente Álvaro Cunhal. Soares, enquanto ouve o seu velho precetor do Colégio Moderno, distrai-se, devolve os aplausos burocráticos que Cunhal lhe tinha proporcionado, mexe no casaco. 

Nunca mais estarão juntos numa manif.