A propósito ainda da prisão de Lula da Silva, li, num destes dias, um comentário de um político argentino que merece alguma reflexão, não especialmente pelo tom algo jocoso que dele transparece, mas pelo que de sério, também, dele pode extrair-se.
Dizia o referido argentino, citado por um jornal, que o facto de Dilma Rousseff ter feito aprovar o reforço da independência do sistema judiciário, num país em que o sistema político se encontra grandemente capturado pela corrupção, só podia ter resultado neste tipo de ocorrências.
São várias as questões sérias que tal comentário suscita.
De um lado, a da própria possibilidade da existência de um sistema judiciário independente e isento no seio de uma sociedade em que as restantes instituições do Estado se encontram reféns de uma corrupção sistémica.
Quero com isto significar a possibilidade da existência de um sistema judicial que funcione autonomamente, imune e à margem dos vícios que contaminam as restantes instituições do Estado que com ele devem articular-se.
De outro, admitindo, ainda assim, como viável e salutar tal hipótese, importa questionar as possibilidades reais que um tal sistema judiciário tem, verdadeiramente, para desenvolver com rectidão a sua função.
Pode o regime em que tal sistema judicial está inserido suportar realmente as investidas da Justiça e comportar-se, candidamente, ante elas?
Que armadilhas – ou, pior, que conivências – é um sistema corrupto capaz de gerar para conter ou desviar a acção da Justiça dos propósitos e dos quadros legais em que esta deve mover-se?
O que estas duas questões conexas querem evidenciar é a dificuldade de conceber uma instituição judiciária quimicamente pura, capaz de sobreviver no seio de uma trama institucional que com ela deveria cooperar, mas que, estando doente, não pode senão querer contrariar os seus desígnios e servir-se dela.
A hipótese optimista de um sistema judicial totalmente objectivo, neutro e capaz de actuar independentemente do ambiente político e social parece – como os factos têm demonstrado ao longo da História – não passar disso mesmo: de uma hipótese optimista.
Uma hipótese que, apesar de tudo, convém preservar, mas que, por isso mesmo, deve ser revestida dos maiores cuidados, para impedir o aproveitamento da “aura de santidade” que torna socialmente legítima a sua acção.
É precisamente por isso que as regras processuais – e os limites que nelas os direitos humanos consagram – devem ser apuradas e rigorosamente respeitadas.
Tais regras devem, assim, ser tão rígidas quanto o possível e tão claras que impeçam – ou pelo menos dificultem muito – as pressões e manipulações a que o sistema de justiça inevitavelmente é sujeito e pode reflectir.
A verdade judicial não pode – não deve – ser alcançada a qualquer preço: se isso acontecer, ela torna-se mais manipulável.
Neste sentido, ela deve ser sempre formal.
O sistema de justiça integra, para além do seu corpo de princípios e regras, um corpo de mulheres e homens a quem cabe interpretar a lei e decidir, mas que vivem na mesma sociedade em que a corrupção se desenvolve.
Tais mulheres e homens emanam dessa sociedade e comungam dos seus ideais, problemas e vícios.
A única forma de higienizar tais pessoas para desempenharem funções judiciais é obrigá-los a observar e demonstrar que cumprem escrupulosamente os direitos fundamentais e as regras processuais que legitimarão as suas decisões.
Sem um núcleo forte e exemplar de regras processuais que permitam o controlo das decisões judiciais, o sistema judicial sucumbirá mais facilmente à contaminação que envolve o sistema institucional do Estado: sucumbirá à corrupção que deveria castigar.