Numa carta de 1957 dirigida a um casal de amigos, o artista plástico Richard Hamilton caracterizava assim a arte pop: «Popular (destinada a um público de massas), Efémera (uma solução a curto prazo), Prescindível (facilmente esquecível),
De baixo custo, Fabricada em série, Jovem (dirigida à juventude), Espirituosa, Sexy, Atrativa, Deslumbrante, Um grande negócio».
Membro do Independent Group, Hamilton foi um dos fundadores do movimento, que nasceu em 1947 no Reino Unido quando Eduardo Paolozzi fez uma colagem em que apareciam a palavra ‘Pop’ e uma nuvem de fumo a sair do cano de uma pistola. A pop era isso: uma arte descomplexada que roubava ideias à BD, à publicidade, às revistas, ao cinema e aos rótulos dos produtos que se vendiam nos supermercados.
A definição do artista britânico surge transcrita numa das paredes da exposição Pós Pop. Fora do Lugar Comum – Desvios da Pop em Portugal e Inglaterra, 1965-1975, patente até setembro na galeria principal da sede da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. No entanto, olhando para as obras à volta, nem tudo é ‘sexy’, ‘atrativo’ ou luminoso – o centro dessa mesma sala é ocupado por Jaz Morto e Arrefece, o Menino de Sua Mãe, uma escultura de Clara Menéres, de 1972, que representa um soldado morto na Guerra Colonial, deitado sobre um féretro metálico.
«Os caixões com os soldados mortos chegavam à noite, de barco, e seguiam para as terras, para as famílias os enterrarem», explica Ana Vasconcelos, curadora da exposição. «Tudo era feito de forma encapotada pelo Regime».
As referências à luta para o controlo das colónias constituem uma das particularidades da arte portuguesa deste período.
Enquanto no Reino Unido, por exemplo, a pop assumia uma feição mais ligeira, em Portugal «esta segunda vaga da pop foi marcada por um caráter introspetivo, mas também pela emergência de uma linguagem mais contundente, adequada à crítica visual feita a um regime opressivo», escreve Penelope Curtis, a diretora do Museu Gulbenkian, no catálogo.
Pós Pop. Fora do Lugar Comum apresenta, através de 215 obras, as semelhanças e as diferenças, os pontos de contacto e os de divergência, entre a arte produzida em Inglaterra e a feita por artistas portugueses naquela época, muitos dos quais se encontravam justamente em Londres. Curtis fala numa «ligação muito forte entre os dois países. Os artistas portugueses queriam fugir e muitos foram para Inglaterra».
Manuel Baptista, que passou por Londres e Paris, era um deles. «Tive o privilégio de ir às inaugurações de exposições de Andy Warhol e de Rauschenberg, foi uma grande experiência que me enriqueceu», explica o autor, que recorda uma vida cultural intensa. Num só dia, «ia ver três filmes, duas exposições e à noite ainda ia a um clube de jazz».
‘Uma série de pernas’
As boas-vindas à exposição são dadas por uma obra de Tom Phillips, figura de grande prestígio no meio intelectual britânico – amigo de Brian Eno, ilustrador de clássicos da Folio Society, ex-administrador dos mais importantes museus e comandante da Ordem do Império Britânico. A pintura representa «a partida do Concorde vista de Bristol», descreve a curadora Ana Vasconcelos. Mas o que mais chama a atenção são as faixas verticais, como um código de barras colorido, que Phillips pintou com os restos de tintas que sobravam no ateliê.
Parada frente a La Place en Marche, um conjunto de pernas recortadas em plexiglas de Lurdes Castro, Ana Vasconcelos traduz o que, no seu entender, é a pop. «Hoje de manhã, quando estava a guiar, vi no espelho retrovisor uma série de pernas a atravessar uma passadeira. E de repente pensei: ‘Isto é a peça da Lurdes Castro’. É um momento isolado do dia-a-dia, são as pernas que ninguém via e que o cinema e a fotografia começaram a ver». «Se fosse um artista americano», continua, «fazia-as bem torneadas, bem luzidias, como se viessem de uma imagem de uma pin-up. Nada daquela subtileza». Um dos denominadores comuns da pop é mesmo «este lado da fragmentação do corpo, que aparece seccionado aos bocados», refere a curadora.
Biquínis e minissaias
Além das salas amplas, o percurso é pontuado por três núcleos ou «caixas negras» também com obras – mas de dimensão mais intimista – e documentos, fotografias, músicas e imagens dos arquivos da RTP. O primeiro tem o título ‘Yé-Yé’, numa alusão à música dos Beatles («She loves you, yeah, yeah, yeah…»).
No interior da caixa, uma fotografia de 1968 mostra Teresa Magalhães, uma das artistas cuja obra está representada na exposição, pronta para uma festa. «Fomos todos para Cascais de comboio, mascarados», recorda. Outra imagem na parede documenta um concurso de minissaias em 1967, promovido pela loja Porfírios, «que era uma cópia das lojas de Carnaby Street, em Londres». E, porque estamos a falar de moda, há ainda duas fotos de João Cutileiro de uma jovem de biquíni, ao lado de uma escultura do artista que representa uma mulher com o mesmo adereço.
Apesar destas novidades, para Teresa Magalhães, «o país era cinzento e faziam tudo para não deixar de ser cinzento». «Então os artistas enchiam-no de cor», complementa Ana Vasconcelos.
Promessa cumprida
«A questão da cor é muito pop», nota Ana Vasconcelos a este propósito. «Artistas como o Allen Jones e o Patrick Caulfield vão beber até às vanguardas, aos grandes artistas da cor». Já Tom Phillips «procura o terminal grey – nas peças dele há sempre um semicírculo cinzento que resulta da fusão de todas as cores».
A propósito da celebração da cor, vejam-se os trabalhos de Ruy Leitão. «Estudou em Londres, na Slade [escola de arte], neste período de 67-70. Patrick Caufield [um dos nomes fortes da pop britânica] considerava-o um dos seus melhores alunos», refere Patrícia Rosas, também curadora. Nascido em Washington, filho da pintora Menez, Ruy Leitão «fez a sua formação em Londres numa altura em que a sua mãe recebe uma bolsa da Gulbenkian e também viaja para Londres. Não sabemos se se cruzaram na grande cidade», diz Ana Vasconcelos.
Ruy Leitão morreria tragicamente aos 27 anos, numa queda de uma janela do andar dos pais. «É uma promessa para alguns não cumprida, para mim cumprida. O que ele fez é notável de criatividade e de inventividade», conclui Vasconcelos.
A arte da guerra
Contendo obras de um cunho fortemente erótico de João Cutileiro e um polémico falo em resina com um estojo próprio, como se de um objeto precioso se tratasse (Relicário, de Clara Menéres, realizado em 1969 e exposto pela primeira vez só em 1977), a segunda ‘caixa negra’ é literalmente uma caixinha de surpresas. As peças mais provocatórias encontram-se em armários cujas portas podem ser fechadas para não ferir «os mais novos e as pessoas mais sensíveis», explica Ana Vasconcelos. «Mas acho que tudo o que se esconde se revela ainda mais».
Lá fora, de regresso ao percurso expositivo, as questões são outras. Alguns artistas começavam a ficar cansados de uma certa frivolidade do imaginário pop e começavam a experimentar outras linguagens. «A figuração para eles torna-se aborrecida», concretiza Ana Vasconcelos. «A Teresa [Magalhães] diz que estava a fazer figuras e chegou a um beco sem saída em 73». A própria, frente a uma série de obras abstratas de sua autoria, confirma: «Fartei-me das imagens e aqui já é a própria pintura que ‘puxa’ e cria a pintura».
Intitulada ‘Agit Prop’, a última caixa junta exemplos da crescente contestação ao regime nas vésperas do 25 de Abril. Ao lado dos cartoons satíricos de João Abel Manta há documentação relativa às intervenções do Grupo Acre: ações públicas que juntavam originalidade, irreverência e sentido de humor. Por exemplo, quando colocaram num prédio das Caldas da Rainha uma placa de mármore a indicar:«No 1.º andar desta casa nasceu a 20-janeiro-1554 D. Sebastião-Rei de Portugal», o que obviamente era falso. Ou quando fizeram diplomas pomposos que concediam ao seu proprietário o estatuto de artista. Agustina Bessa-Luís e Manoel Oliveira estiveram entre os que aderiram à brincadeira.
É na última sala que a definição de arte pop de Richard Hamilton – ‘efémera’, ‘prescindível’, ‘jovem’, ‘sexy’, ‘deslumbrante’… – e o soldado morto de Clara Menéres se encontram, provocando uma espécie de dissonância cognitiva. Há mais referências ao conflito, em obras de Palolo – que esteve guerra e pintou os soldados como marionetas –, de Eduardo Batarda – que fez o serviço militar em Mafra mas escapou à última hora a ser mobilizado, graças a uma bolsa da Gulbenkian – ou de José de Guimarães – que esteve em Angola como engenheiro de comunicações.«A arte africana resolveu o meu problema de identidade», afirma sem rodeios.
Se OVitória de Marracuene, de Batarda, é um desenho cáustico e delirante, para ser visto ao pormenor como um puzzle de Mordillo, Retrato de Família, de Guimarães, é uma obra de grande escala feita de caixotes, «Foi mostrada no Museu de Angola e altamente contestada, vilipendiada, maltratada», revela o autor. Passou 30 anos no «purgatório» até ser recuperada para a exposição inaugural de Serralves.
A fechar, encontramos um trabalho de Nikias Skapinakis, pintor português de ascendência grega, que retrata o 25 de Abril como uma grande celebração popular. No topo de um pedestal surge a figura da Liberdade Guiando o Povo, copiada de um célebre quadro de Delacroix sobre a Revolução Francesa. Colorida, otimista, sensual, acessível e ingénua, mas marcadamente política, a pintura de Nikias condensa muito do que foi a pop – e os seus desvios – em território português.