Para quem nasce pouco antes ou pouco depois do 25 de Abril e cresce em democracia, há ainda reminiscências que só podem encontrar a sua justificação nos tempos da transição e em muitos dos seus agentes políticos (PREC, MFA, Conselho da Revolução, Presidência da República, etc.). Para a minha geração, isso já pouco importará, mas lucrará em perceber o impacto. Esses tempos foram de grande carga ideológica, mesmo que nem sempre protagonizados pelos melhores representantes. Foram períodos de afirmação de um alegado ascendente das “esquerdas” – onde o PS sempre quis estar, desde logo pelo simbolismo de Mário Soares – na afirmação da “revolução”. É óbvio que esse ascendente aspirava à ostracização-exclusão dos setores (digamos assim) “menos” social-democratas do PSD (mais conservadores e liberais, portanto) e de tudo o que fosse CDS e mais à sua direita. Para muitos dos fautores desse ascendente e ostracização, envolvidos, entre outras, nas fórmulas do “reacionário” e do “burguês”, o fulcral discursivo era a ilegitimidade dos setores a excluir dos benefícios das “vitórias” e “conquistas” da revolução. Por arrasto, haveria um monopólio das “esquerdas” para assumir, reivindicar e lograr sucesso em várias matérias e processos, a começar pela imprescindível defesa dos interesses da força de trabalho contra o “patronato” (relembrem-se os episódios da unicidade sindical). As forças a excluir nunca conseguiram, até à onda da Aliança Democrática de 1979, assente na lúcida cabeça de Sá Carneiro sobre esse quadro, fazer vingar a tese de que igualmente partilhavam a busca de muitas dessas “conquistas” de Abril – em especial no domínio do Estado social de direito e da diminuição das desigualdades. Vem desse tempo belicoso e instável a sedimentação da dicotomia “esquerda versus direita” que permanece até hoje. A campanha para as presidenciais de 1986, que implicaram uma seriação complexa à esquerda para um combate final de Soares contra Freitas do Amaral, acabou por ser o clímax desse ambiente bipolar. As revisões de 1982 e 1989 encerraram esse fervor (ainda) de cariz revolucionário e normalizaram um certo pragmatismo em detrimento dos ideários beligerantes. Mas muitos dos princípios ficaram para rentabilização política e duram até aos nossos dias.
Duram para que determinadas bolsas de pessoas e de assuntos sejam ainda aparentemente cativos da esquerda e outros alimentados pela direita. Por exemplo, Paulo Portas agarrou–se a essa dicotomia para fazer sobreviver o CDS, virado em PP, perante a absorção persistente do PSD. O Bloco de Esquerda encontrou o cimento agregador dos movimentos que lhe deram origem na escolha das causas “fraturantes” que teriam impacto no seu eleitorado-alvo. E assim continuamos. Quando vemos como, à esquerda e à direita, se captura a luta das classes da cultura e das artes, a igualdade de direitos independentemente do sexo e da orientação sexual, a disciplina da identidade de género, o combate à corrupção, as carreiras do funcionalismo público, os alívios da carga fiscal, as políticas do emprego, as aspirações do aparelho judiciário, as movimentações nas escolas, os desafios do investimento do Estado, as agruras da agricultura, os apoios (e o seu controlo) aos desfavorecidos, podemos ver que a nossa política continua a ir buscar muito à bipolaridade que veio das batalhas de Abril. No fim, é apenas e só o país e o seu desenvolvimento. Mas nesses legados de Abril ainda se encontram, paradoxalmente, muitas das dificuldades que impedem uma estratégia concertada a longo prazo e em benefício de todos. Mesmo para os novos de hoje, que apenas parecem querer ser como os novos de outro tempo.
Professor de Direito da Universidade de Coimbra. Jurisconsulto
Escreve à quinta-feira