Crónica sobre amoralidades


A publicação dos vídeos das diligências de inquirição dos arguidos como quem assiste ao vivo e a cores a actos processuais reservados é toda uma nova fronteira da indignidade


São incontornáveis, nesta semana, dois exemplos acabados da falência moral das instituições em Portugal e do estado de avançada decomposição a que chegou o nosso regime.

O pitoresco, que não desculpa esta curiosidade mórbida, dos vídeos das inquirições dos arguidos do caso Operação Marquês durante os seus interrogatórios judiciais, que têm tido grande publicitação (e suponho que também audiência), não evita que, apesar de serem elucidativos e didácticos sobre o funcionamento da justiça, devam horrorizar qualquer cidadão de bem e fazê–lo descrer na justiça que temos.

É sabida e comentada no meio, e já não é de hoje, uma certa desilusão dos sonhadores do PREC e do Maio de 68 que entraram então nas magistraturas e as capturaram, e cujo progressivo desencanto com o percurso do país e a palpável falência da justiça que idealizaram os fazia, de tempos a tempos e numa espécie de consolação da justiça possível, entregar os seus arguidos para condenação e imolação garantida no circo do fogo mediático e instantâneo da praça pública. Exemplo que fez, já se vê, escola!

São inúmeros, senão mesmo todos, os casos mediáticos em que se julgaram figuras públicas e onde aconteceram violações grosseiras do segredo de justiça em fases processuais de onde as “fugas” têm de ser, necessariamente, dos próprios agentes da justiça responsáveis pela respectiva fase, por acção, muitas vezes, e omissão cúmplice em também muitas outras.

Quando hoje em dia há equipas de reportagem à porta dos arguidos a filmar diligências processuais de processos em segredo de justiça tornou-se evidente, a um tempo, que o exemplo que fez escola se cristalizou – sem exemplos palpáveis de que assim não é – numa ideia generalizada de que este é um crime sem castigo (que é praticado sem remorso pelos que deviam zelar pela legalidade e os direitos dos arguidos e/ou a custódia dos processos); e a outro tempo, mais corrosivo e menos evidente na espuma dos dias, que a legitimidade do exercício da acção penal pelos costumados traficantes das informações e respectivo mandato, num Estado de direito, fica claramente em xeque com estas actuações.

Não obstante, nunca até aqui se tinha ido tão longe! A publicação e teledifusão dos filmes dos interrogatórios de qualquer arguido – independentemente da sua notoriedade e do manifesto interesse jornalístico que têm –, quando acontecem, não podem deixar de ser vistas como a falência absoluta do Estado de direito e a negação mais primária e rotunda da razão pela qual se proibiu a justiça privada, ou da construção civilizacional de que o processo penal deve ser a materialização de princípios constitucionais onde grassam direitos e garantias que um Estado (que se comporte como tal) não pode permitir que se não cumpram.

Neste específico conspecto cristalizou-se de forma histórica e costumada, quase frugal, a normalidade da violação do segredo de justiça com partilha de peças e informações sobre processos em curso. No entanto, a publicação dos vídeos das diligências de inquirição dos arguidos como quem assiste ao vivo e a cores a actos processuais reservados é toda uma nova fronteira da indignidade.

Ninguém, culpado ou não, mas sobretudo sem sequer ter sido julgado e condenado, deve passar por violação tão flagrante dos seus direitos em vários prismas, desde o direito a um processo equitativo e legal ao da presunção da inocência, e também à não violação do seu eventual futuro direito ao silêncio e demais direitos que tem como arguido, ou também, e mais prosaicamente, da reserva do seu direito à imagem. Não podemos esquecer que foi a lei e a autoridade do Estado quem convocou os arguidos à condição de ali estarem contra a sua vontade. Portanto, é o mesmo Estado e os seus agentes quem tem de garantir que o conteúdo desses actos não violará os direitos dos que este pôs nessa posição, exactamente em nome da lei!

Nesta fase, produzido o dano, já interessa pouco saber se foi ordenado ou não um inquérito para saber se estamos perante um crime de violação do segredo de justiça.

Um Estado que não consegue garantir a inviolabilidade dos actos do processo que promove e guarda e os direitos mais elementares dos arguidos que persegue ao abrigo do seu imperium é um Estado incapaz que perde (eticamente) a legitimidade para condenar (agora nos tribunais) os arguidos que, pela sua inépcia, já fez arder em actos inquisitórios nos média e na praça pública.

Este cenário, que ninguém atalha, da violação do segredo de justiça, que galga sucessivas fronteiras de iniquidade aos olhos de todos, é a prova irrefutável do declínio moral da justiça e da descrença dos operadores no sistema, o que necessariamente se repercute nos cidadãos perante as suas instituições e no descrédito que é já indisfarçável.

Ao mesmo nível da aceleração furiosa contra a parede no que se refere à legitimação da democracia e do Estado de direito democrático está esta última relevante actuação do senhor presidente da Assembleia da República que, de pronto e em auxílio branqueador do chefe de bancada do seu partido, veio afirmar – sem que tal se revista de grande surpresa ou se lhe adivinhe particular engulho – que não há qualquer ilegalidade no facto de os senhores deputados das regiões autónomas terem um subsídio de auxílio às suas deslocações e, em cúmulo e recebendo-as, pedirem e ser-lhes restituído o valor, já de si subsidiado, desses bilhetes que pagaram com os tais subsídios.

Se nos abstivermos da racionalidade normal da forma como estes senhores olham para a vida e o mundo, e o seu feudo chamado Portugal, interessará referir que nem tudo o que é legal é probo, justo e acertado, e também que a lei, a espaços, leva a resultados injustos, iníquos e aberrantes. Além de que a ética e a lei, enquanto regras de conduta concorrentes, não têm confusão possível para um homem sério!

Assim, não sendo (alegadamente) ilegal o que o César faz e, por isso, não ter de devolver o lucro que tem, mais ou menos igual a uma viagem de cada vez que vai a casa, nenhum cidadão cumpridor dos seus deveres entende ser justo, probo ou ético que alguém que, sendo titular de um cargo público e a quem subsidiaram as deslocações em complemento ao seu vencimento, ainda seja reembolsado sempre que viajar (pelo menos até esgotada a subsidiação), isto quando nenhum cidadão cujos impostos pagam esta ignomínia tem para si (e, já agora, a sua família) iguais prebendas.

Não é, pois, um tema de legalidade, mas sim de pura moralidade. É o tema do nepotismo com que os eleitos do povo zurzem na população apática e cada vez mais famélica os seus esquemas (sempre apelidados de legais) para viverem à custa dos pesados impostos que aumentam, e duplicando de forma ardilosa e plutocrática subvenções enquanto contratam para o festim do Orçamento familiares e amigos.

Estes actos demonstram, pois, a tentativa pacóvia e serôdia de esconder a putrefacção dos princípios morais e éticos destes plutocratas de pacotilha que se escondem atrás de um argumento formal (e discutível) de alegada legalidade para cometer os seus saques (dizem que legais) aos cofres do Estado.

Dois exemplos, assim, da nossa falência moral enquanto país.

 

Advogado na norma8advogados

pf@norma8.pt

Escreve à quinta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990