O Cardeal Patriarca de Lisboa, na sequência de uma reunião da Conferência Episcopal em que os bispos portugueses debateram o tema da morte assistida, veio dizer que há um longo caminho até que se realize um referendo ou se aprove uma lei.
Como católico que tem um dos duzentos e trinta votos que determinarão o futuro das iniciativas legislativas, como cidadão que não apoia os projetos que se destinam a encontrar, em Portugal, a norma que vai permitir acabar com o que muitos académicos chamam de sofrimento extremo, reajo a estas palavras de D. Manuel Clemente dizendo que o prelado e a Conferência Episcopal deixaram de conhecer o país em que estão, desligaram-se da realidade da vida dos nossos dias.
A Igreja Católica vive tempos de grande mudança. Esses tempos são de confronto interno entre a leitura da presença no poder e a proximidade aos crentes, o sofrimento partilhado e desinteressado com os que mais precisam.
Em Portugal, salvo raras exceções, a ICAR caminha para a irrelevância para além de Fátima, por incompetência para se afirmar pelos seus valores sem carecer de se meter nas questões da determinação política e a fazer refém.
As questões da vida são determinantes na nossa cultura. É exatamente por isso que me coloco no lado dos que não validam a atual lei da interrupção voluntária da gravidez e as propostas sobre a morte assistida. Mas não nego que as interrogações que dão origem as ambos os problemas só recebem da ICAR um não totalitário, uma radical oposição sem dados, uma ordem sem sustentação teológica e científica que faça o comum dos cidadãos pensar e agir.
Ora, nestes tempos em que a opinião se proletarizou, a ICAR não se pode limitar à determinação de um seguidismo puro, a uma imposição do que devia ser sem mais justificações.
A ICAR não consegue separar as questões da vida das questões da felicidade. Ora, neste nosso tempo, não há nem um só ser que não atalhe caminho quando alguém lhe fale na “pena” que é a vida terrena, que não oblitere o “pecado” para saltar para o tempo seguinte. As questões da felicidade individual são, neste milénio da ciência e da técnica, neste século da negação absoluta da implicação dos dogmas na medicina, as que mais implicam nos universos de decisão política. E, longe disso, os temas habituais já não são património das esquerdas, atravessam, como se pôde constatar com as opiniões de Passos Coelho e de Rui Rio, outros campos, outras origens.
As opções pela felicidade, que fizeram ultrapassar as questões do casamento entre pessoas do mesmo sexo, que vão fazer normalizar as questões da procriação medicamente assistida, que vão permitir as questões da adoção por casais homossexuais, que vão autorizar as questões da identidade de género, todas elas deixaram de ser entendíveis numa leitura irritantemente tolerante (como eu odeio a palavra tolerância) desde que clandestina e sofredora, para passarem a autorizar a cidadania completa.
Está claro, quando a ICAR se mantém enredada na impossibilidade de permitir padres casados, de autorizar a partilha absoluta da comunhão a divorciados, de evoluir na aceitação completa das mulheres no seu seio, tudo questões que não são dogma de fé, torna-se difícil que se permita uma audição ponderada da Conferência Episcopal Portuguesa no momento em que os legisladores se confrontam com a decisão sobre cada um dos temas.
Quando reparo em Clemente, numa veste mais modesta que Burke mas mesmo assim igualmente cheia de superioridade, dou comigo a pensar o quão necessário se revela exigir uma outra igreja. Quando observo a escolha primordial entre as preces cerimoniais de Ordens arcaicas e a desvalorização da pastoral próxima em bairros de imigrantes, em territórios marginais, em movimentos operários, o que me sobra é a constatação de que S. Vicente de Fora se transformou numa saudade do tempo das inquisições e dos fascismos.
Ao contrário do que a ICAR pensa, não há já em Portugal um só eleitor que se guie pelas prédicas dominicais escritas com base em ancestrais leituras do país. Não há condições para um regresso à autorização prévia do prior para a determinação das vias que cada via deve observar. Porque a salvação da alma exige outros métodos, porque a beleza dos evangelhos autoriza outras formas de ser simples e salvador das almas.
Há uma diferença entre Bento XVI sucessor de Pedro e Bento XVI pensador da fé. No primeiro encontramos o atavismo que quase negava Vaticano II; no segundo, encontrávamos o sustentáculo das razões que ainda nos podem fazer ser Cristo nos dias correntes. Em Francisco, mesmo que possamos ter uma leitura folclórica da prática pastoral, não negamos a proximidade, mesmo que sem um fundamento programático que nos inquiete. Por cá, só nos resta a reinvenção da Igreja para que não morra ou se torne absolutamente irrelevante.