O Centeno político


Os ataques a Centeno terão como consequência a conversão do técnico de base num conhecedor das qualidades exigidas a um político de fundo


Imagino o que terão sido os últimos dias dos assessores e conselheiros de Mário Centeno, com ligação direta ao gabinete do primeiro-ministro. Um reboliço. O alvo a abater está identificado e a estratégia não vai parar. Todos eles saberiam que vinha aí mais um ataque de cavalaria contra a credibilidade política e financeira da gestão do país, entregue por António Costa ao grande responsável pela elaboração das linhas essenciais do seu projeto de governo nas eleições de 2015. E ainda mais saberiam quais as fontes desse novo ataque e as capas e as câmaras que estavam prontas a “marcar a agenda”. Agora seria focado no Serviço Nacional de Saúde e nas omissões particularmente delicadas de certos serviços e hospitais, imputáveis às “cativações” e às “opções”. Poupa-se em prejuízo das pessoas e dos cuidados e condições mais básicos e reivindicativos de dignidade e tutela – seria a mensagem essencial a interiorizar nos cidadãos. Aliás, o texto publicado por Centeno, no início desta semana, num jornal diário (“A credibilidade da política económica, 2017”), numa captação mais detalhada, só poderia ser explicado (desde logo pelo estilo tão corrido e despido, tão panfletário e dirigido) como (é dito pelos consultores da comunicação) uma “antecipação”. Em algumas das suas partes, até é mais do que isso: é uma “previsão” do que serão as linhas de um próximo governo em que Centeno (com Costa) seja ministro das Finanças. Logo, um programa eleitoral. Um ministro que vale votos terá essa legitimidade, mas só a pode exercer se o primeiro-ministro (atual e candidato) o autorizar. Só assim pode ter sido. Um ataque a qualquer um deles é visto como um ataque ao outro, pois da dupla depende o sucesso da campanha eleitoral em curso.

Não se discutiram ainda com profundidade as linhas com que se cosem Costa e Centeno desde que se conheceram e se meteram nesta aventura. Mas percebe-se demasiado bem que há respeito, lealdade, compromisso e eficiência. A partir de certa altura – quando, num governo ainda repleto de dúvidas, o défice público orçamental deu mostras de controlo e retração, independentemente dos métodos utilizados – ficaram indelevelmente unidos num destino comum. Quem hoje quer combater o governo e evitar que tenha a maioria absoluta em 2019 tem de combater denodadamente Centeno. Em certa medida, o próprio governo sempre acautelou a posição de Centeno e não lhe deu grande (ou a devida) exposição. Fez a prognose certa: se corresse bem com os pactos da Comissão Europeia, nos financiadores externos, na administração pública e na economia do país, teria de resguardar a sua caução. Que, a correr bem, seria de oposição difícil pela direita e de confronto embaraçoso para a esquerda. Mas era óbvio que seria o destino das setas. Aconteceu algo fora do programa: a oportunidade de presidir ao Eurogrupo, que não se podia enjeitar. A caução fortaleceu e ganhou foros de indiscutível, com reconhecimento sequencial. Com Costa numa onda mais política, essa inevitabilidade teria de ser afrontada pela via da seriedade da pessoa e da credibilidade da atuação de Centeno, como motor substancial da filosofia do governo – este e o próximo. É ao que estamos (e vamos continuar) a assistir.

Como sempre, o processo tem um perigo para os oposicionistas (também os de dentro do PS): tornar um técnico de base num político de fundo. Com resistência e nervos de aço para ser o pugilista que moldará o caminho para a vitória final. É isso que vamos ter a partir de agora: o Centeno político. À volta do seu sucesso e do seu insucesso, muitos se ocuparão a partir de agora. Sabemos a razão.

Professor de Direito da Universidade de Coimbra. Jurisconsulto

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