Nesta semana que passou multiplicaram-se as opiniões faladas, escritas e televisionadas sobre o caso do apartamento triplex do Guarujá, ou seja, o pouco singular caso em que o antigo presidente da República Federativa do Brasil – e aqui é muito importante atentar nas diferenças, para não tropeçar nas óbvias semelhanças – escolhe, altera, decora e depois habita um apartamento que diz que não é seu num prédio de luxo e numa zona exclusiva e cara do estado de São Paulo.
Curiosamente, nesta pátria que é a língua portuguesa, cá como lá (e sem esquecer que há milhões de portugueses a morar em Paris), ainda que alegando a tecnicalidade da falta de registo em nome próprio da casa, há dois políticos com responsabilidades executivas que são arguidos em processos por corrupção, depois de receberem pagamentos e vantagens de empreiteiros.
Mas há também algumas diferenças fundamentais. Este processo do Guarujá está ligado ao megaprocesso Lava Jato, que começou em Março de 2014 com variados julgamentos e condenações, e no âmbito do qual a empreiteira OAS, dona formal do triplex, através da sua cúpula dirigente, já está condenada por inúmeros actos de corrupção, havendo também, passados cerca de quatro anos, mais de 188 outras condenações.
Só por isto deveriam bastar estes números para se julgar desmentida esta teoria de este ser um processo ad hominem contra o mártir das esquerdas. Mas que dizer então se entre os condenados a penas de prisão efectiva se contam inúmeros donos de empresas, desde logo o presidente da OAS, dona do tal apartamento onde Lula vive mas não é seu, mas também Marcelo Odebrecht, presidente da maior construtora brasileira, e vários outros corruptores?
Onde está aqui a lógica do golpe de direita reaccionária focado e maquiavelicamente orquestrado apenas e só contra o pobre metalúrgico (antigo) comunista e entretanto prefaciador de importantes obras de referência sobre a tortura?
Catarina Martins, conhecida pela sua enorme intolerância quanto à violação das liberdades individuais desde que não aconteçam na Venezuela, Coreia do Norte, Cuba ou outros paraísos dilectos da liberdade e do primado da lei, do alto (figurativo) da sua enorme sabedoria processual, já decretou: “A prisão de Lula não tem nada a ver com luta contra a corrupção. Estaremos sempre na primeira linha na luta contra a corrupção, aqui e em qualquer outro lugar, mas a prisão de Lula não é sobre corrupção, porque sabemos que Temer é presidente e, se quisermos lutar contra a corrupção, primeiramente, fora Temer.”
A qualidade do silogismo usado não é brilhante, pelo que ficamos suspensos da sua enorme sabedoria, aguardando a revelação da razão pela qual Lula, julgado e condenado em recurso a mais de 12 anos de prisão por corrupção, afinal, como garante Catarina, não foi preso por ser corrupto.
Aparentemente, o que se retira da iluminada mas pouco clara opinião de Catarina é que, se estiver em funções um putativo maior corrupto do que aquele que seja uma figura da sua estima, enquanto esse primeiro não for condenado, o predilecto segundo corrupto será apenas um perseguido político.
Como argumento jurídico, tem a consistência de uma alucinação ácida; como cegueira ideológica, está ao estilo de quem ainda há pouco idolatrava o democrata Maduro, a quem curiosamente também identifica, não como um ditador que condena a Venezuela e o seu povo ao desastre, mas antes como vítima do imperialismo norte-americano.
Ao que parece, na sua sapiencial opinião, que explana gratuitamente a quem a ouve, Catarina defende que a corrupção de esquerda não existe e que este caso é uma invenção da direita reaccionária e fascista brasileira, que passa os seus dias (toda e em cúmulo) ocupada e num afã entre prender inocentes de esquerda e matar activistas negras e lésbicas.
A estafada ideia das conspirações de direita fanática contra os pobres esquerdistas, que fazem vidas de fausto e luxo – e esta é outra das coincidências destes processos –, entra sempre nos delírios panfletários do combate ao inimigo maior ou do bode expiatório dos corruptos apanhados.
Também por cá, com o silêncio cúmplice de Catarina, há um arguido que, vivendo faustosamente sem recursos que o justifiquem, se queixa de ser perseguido politicamente. Isto na presença de uma acusação formal (contra cujo atraso muito se bramou) e onde a ideia da perseguição (como a esquerda aponta a Sérgio Moro) já foi devidamente sufragada pelas instâncias de recurso sem ter encontrado em qualquer das vezes) qualquer apoiante, conhecendo-se apenas uma vitória processual dada por um agora também arguido desembargador.
Perante isto, tenhamos presente as seguintes coincidências. Lula foi julgado por Sérgio Moro e condenado a nove anos e seis meses de prisão; em recurso, o Tribunal Regional Federal aumentou a pena para 12 anos e um mês por corrupção e branqueamento de capitais, depois reapreciada em sentido concordante, no julgamento do habeas corpus, pelo Supremo Tribunal Federal.
Acresce que, além da condenação no processo do triplex do Guarujá, Lula está ainda constituído arguido pelo menos nos seguintes processos das operações Lava Jato e Zelotes por: obstrução à justiça, Caso Cerveró; tráfico de influência e organização criminosa, caso Odebrecht Angola; tráfico de influência e organização criminosa, caso Caças Suecos; corrupção passiva, caso Medida Provisória 471; e corrupção passiva e lavagem de dinheiro, caso Sítio em Atibaia.
Há quem encontre aqui, ainda assim, apenas e só indícios de perseguição política, o que poderá ser normal se considerarmos que no caso mais próximo de nós, e ainda vamos na fase da abertura de instrução, há cerca de um ano já tinham sido interpostos e conhecidos mais de 30 recursos para várias instâncias superiores, desde Relação de Lisboa quase toda, o Supremo Tribunal de Justiça e o Tribunal Constitucional, e, com a única excepção acima referida, todos negaram provimento ao recurso ou reclamação, incluindo as que falavam na tal perseguição. Mas mesmo assim, e ainda há pouco, o arguido invocava a costumada teoria (aqui revisitada no Brasil) do golpe da direita contra as suas aspirações políticas. Não podia, pois, esperar-se aqui nada diferente!
Mas porventura o expoente máximo da loucura delirante à volta deste processo passa pela fundamentação da alegada motivação política deste processo feita num artigo de António Rodrigues, neste jornal, que nada referindo sobre a bondade, ou não, da condenação em si, ou quais os atropelos processuais de que o processo padeceu ou outra qualquer violação dos direitos de defesa, conclui existirem putativos argumentos jurídicos que demonstram a politização do processo.
Assim, peregrina e inovadoramente, diga–se, o autor erige à condição de alegado argumento jurídico para prova da politização do processo e da condenação deste inocente – a usar contra os que (sendo segundo este necessariamente de direita) entendem, como eu, que Lula foi condenado por corrupção e branqueamento num processo penal de acordo com as leis em vigor e as suas garantias processuais – o facto de os prazos processuais terem sido cumpridos e de a justiça in casu ter sido mais célere do que aquilo que as estatísticas fariam prever. Tal facto é o incontornável argumento jurídico que demonstra estarmos perante uma condenação política?!
Teremos de recordar o que se escreveu por cá sobre “os tempos da justiça” e o enorme escândalo que causou a tardia acusação e suas sucessivas prorrogações, para enfatizar o absoluto espanto por esta nova deriva argumentativa. Com efeito, nada fazia prever o vislumbre deste instrumento da opressão fascista de direita, que persegue implacável e politicamente as suas vítimas com esse instrumento de gritante e opressora ilegalidade chamado celeridade processual!
Não nos faltava mais nada!
P.S. Sobre a alegada perseguição política a Lula da Silva na aceleração da tramitação do seu processo, atente-se no que noticia o site da Globo (g1.globo.com): “Lava Jato completa quatro anos neste sábado (17) e, desde a deflagração da 1.a fase da operação, em março de 2014, 40 processos já foram sentenciados pelo juiz federal Sérgio Moro, responsável pelas ações penais decorrentes da operação na primeira instância. Foram 188 condenações contra 123 réus, que somam 1861 anos e 20 dias de pena.” Refere o mesmo artigo, relativamente a condenações em primeira instância, que o tempo médio para a prolacção das sentenças finais foi de 9 meses e 10 dias, e como exemplos refere que o deputado Eduardo Cunha foi condenado a 15 anos por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e evasão de divisas no mesmo tribunal de Lula, em cerca de 5 meses; André Vargas, o mais célere, em pouco mais de 4 meses; já para o processo de Lula, o tempo de tramitação em primeira instância foi de quase 10 meses (295 dias) – portanto, no intervalo superior da média no cotejo com os restantes arguidos e o dobro destes dois referidos. Estamos, pois, também por aqui, esclarecidos sobre o esforço branqueador…
Advogado na norma8advogados
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Escreve à quinta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990