A Legacy of Spies*


Enganem-se os que acalentam que o novo equilíbrio mundial porá termo ao terrorismo islâmico. Numa guerra fria, de nervos, tudo vale. 


Diplomatas dos dois lados da nova cortina fazem as malas e regressam a casa. Cansado, George Smiley respira fundo e afunda-se na cadeira. É em Freiburg, no sul da Alemanha, que nos diz adeus, precisamente agora que os espiões do seu tempo regressam.

Há precisamente dez anos leu “The New Cold War”, do jornalista Edward Lucas, e percebeu tudo. Primeiro, a negação; depois, a indiferença; a seguir, a raiva e a desorientação habitual dos governos que não se prepararam para a visão que Putin tem da Rússia. Presentemente, com o envenenamento de um ex-espião russo que trabalhou para os britânicos, ouve os noticiários, comentadores incluídos, a falarem do medo. 

Olha pela janela e recorda-se do medo que serve para definir tudo. Sentiu-o em plena Guerra Fria, mas cedo o transformaram em certeza perante a incerteza do novo mundo. Sem URSS, e com os EUA como única potência mundial, a ameaça terrorista fazia isso mesmo: aterrorizava. De acordo com o que se dizia, o medo do tempo de Smiley era seguro, certo, concreto. Houve quem, no mercado livre que conquistava o mundo, no crescimento da China e na redução da pobreza em África, nas novas democracias no leste da Europa, visse uma ameaça mais grave que a que pairava na Guerra Fria; na sua guerra.

Tudo passa menos o medo, que é uma constante, nem damos valor ao que temos exceto quando o perdemos. Verdades eternas que se ignoram. Os que clamaram contra a abertura dos mercados chorarão os efeitos do fecho das fronteiras e do aumento das tarifas aduaneiras. A falta de diálogo conduzirá ao armamento, com dinheiro que podia, devia ser usado noutros domínios. Espiões serão mortos em Londres e em Paris (em Moscovo também), vidas secretas caminharão ao nosso lado, com a pequena grande diferença que são as novas tecnologias. 

E enganem-se os que acalentam que o novo equilíbrio mundial porá termo ao terrorismo islâmico. Numa guerra fria, de nervos, tudo vale. Na primeira, EUA e URSS combateram no chamado Terceiro Mundo guerras indiretas com soldados que não eram seus. Nada nos garante que os extremismos islâmicos não sejam utilizados como novas armas para novos ataques numa nova guerra fria sem envolvimento direto dos seus principais intervenientes. Uma certeza podemos ter: George Smiley não terá saudades. Acena-nos da janela, deixando o legado para outro.

*Título do último romance de John le Carré

Advogado 
Escreve à quinta-feira 


A Legacy of Spies*


Enganem-se os que acalentam que o novo equilíbrio mundial porá termo ao terrorismo islâmico. Numa guerra fria, de nervos, tudo vale. 


Diplomatas dos dois lados da nova cortina fazem as malas e regressam a casa. Cansado, George Smiley respira fundo e afunda-se na cadeira. É em Freiburg, no sul da Alemanha, que nos diz adeus, precisamente agora que os espiões do seu tempo regressam.

Há precisamente dez anos leu “The New Cold War”, do jornalista Edward Lucas, e percebeu tudo. Primeiro, a negação; depois, a indiferença; a seguir, a raiva e a desorientação habitual dos governos que não se prepararam para a visão que Putin tem da Rússia. Presentemente, com o envenenamento de um ex-espião russo que trabalhou para os britânicos, ouve os noticiários, comentadores incluídos, a falarem do medo. 

Olha pela janela e recorda-se do medo que serve para definir tudo. Sentiu-o em plena Guerra Fria, mas cedo o transformaram em certeza perante a incerteza do novo mundo. Sem URSS, e com os EUA como única potência mundial, a ameaça terrorista fazia isso mesmo: aterrorizava. De acordo com o que se dizia, o medo do tempo de Smiley era seguro, certo, concreto. Houve quem, no mercado livre que conquistava o mundo, no crescimento da China e na redução da pobreza em África, nas novas democracias no leste da Europa, visse uma ameaça mais grave que a que pairava na Guerra Fria; na sua guerra.

Tudo passa menos o medo, que é uma constante, nem damos valor ao que temos exceto quando o perdemos. Verdades eternas que se ignoram. Os que clamaram contra a abertura dos mercados chorarão os efeitos do fecho das fronteiras e do aumento das tarifas aduaneiras. A falta de diálogo conduzirá ao armamento, com dinheiro que podia, devia ser usado noutros domínios. Espiões serão mortos em Londres e em Paris (em Moscovo também), vidas secretas caminharão ao nosso lado, com a pequena grande diferença que são as novas tecnologias. 

E enganem-se os que acalentam que o novo equilíbrio mundial porá termo ao terrorismo islâmico. Numa guerra fria, de nervos, tudo vale. Na primeira, EUA e URSS combateram no chamado Terceiro Mundo guerras indiretas com soldados que não eram seus. Nada nos garante que os extremismos islâmicos não sejam utilizados como novas armas para novos ataques numa nova guerra fria sem envolvimento direto dos seus principais intervenientes. Uma certeza podemos ter: George Smiley não terá saudades. Acena-nos da janela, deixando o legado para outro.

*Título do último romance de John le Carré

Advogado 
Escreve à quinta-feira