Com a abundância interminável de informação e a complexidade dos temas que nos esmagam, é natural que muitas das nossas relações (desde as pessoais e familiares até às profissionais) se rejam cada vez mais pelo critério fundamental da confiança e da fiabilidade. Muitas das decisões que delegamos ou nos delegam servem-se, no momento da sua assunção e execução, desse princípio básico: acreditar que outrem fez o seu “trabalho de casa” e chegou à melhor resolução. Não é possível nem verosímil controlar, fiscalizar e rever todo o processo antes do ponto crítico. Saber decidir é saber escolher bem quem vai decidir, por nós ou connosco. No entretanto desta vinculação gera-se cumplicidade emocional e lealdade na conduta. Atuamos em reciprocidade e tiramos retrospetivamente as conclusões para as continuidades ou para as mudanças. Por isso, a política, que nos rodeia e nos condiciona, também se desvinculou da carga ideológica e do dogmatismo teorético. Acreditamos nas pessoas e devolvemos o poder originário a quem nos merece o crédito, na convicção de estarmos a fazer a melhor escolha. Tem feito escola chamar-se pragmatismo a essa atitude, em torno de uma atitude prática e objetiva, que possa ser apreendida sem dificuldades pela pessoa média. Paredes-meias com algum populismo, com isso mudou-se a rota para uma “personalização ativa”. Antes chamaram-lhe carisma, hoje podemos ver mais a busca de um misto de credibilidade e de familiaridade. Enfim, confiar em quem nos parece mais fiável por estar próximo de nós. A quem compraríamos um automóvel usado e a quem daríamos depois notícias do prazer que é conduzir esse automóvel bem estimado.
Veja-se essa personalização na atual campanha para as legislativas de 2019. Tirando as barreiras e resistências previsíveis do Orçamento do Estado, o país estabilizou na conjuntura económica e financeira favorável que o exterior nos ofereceu e o esforço analítico do governo rentabilizou. As pessoas e as empresas esqueceram os traumas da crise anterior e regressaram ao modo de vida consentâneo. Acreditam que as restituições e as evoluções vieram para ficar e crescer. Revoltam–se com vários sistemas públicos de bens e serviços, mas vivem com a possibilidade (ou a expetativa) de os partilhar com (ou substituir por) outros sistemas privados. Estão disponíveis para dar a confiança à liderança do modelo das esquerdas. A tese dominante (mesmo em Belém) é a cristalização dos blocos dos dois sentidos, com variações pouco sensíveis até à colocação dos votos. Mesmo com CDS (oportuno na conjuntura) a desafiar o PSD e o PCP (receoso de ser dispensado no próximo ciclo) a apertar o PS, o mais certo é que em 2019 apenas se vá decidir se o PS precisa ou não do BE para governar com maioria. E este passo será resolvido ao centro volátil e nos indecisos por norma. É aqui que o pragmatismo vai encontrar o seu aliado essencial: o humanismo de proximidade. Dar a perceber que o político tem sentimentos, angústias, ansiedades, incertezas, rotinas, reações, como um qualquer de nós. Será neste afeto marcelista que António Costa se quererá demarcar em definitivo de Rui Rio e dar a machadada final. A partir de agora, a campanha deixou de ser do PS, do governo e dos ministros – passou a ser um road show de Costa, com aparições escolhidas, resguardos sibilinos e aparições cirúrgicas. Se o processo de humanização em curso (depois do ato falhado dos fogos trágicos do verão) conduzir à maioria do PS, então poderemos dizer que o ciclo iniciado em 2015 se concluirá com total sucesso político. E Costa já nos poderá vender um automóvel novinho em folha.
Professor de Direito da Universidade de Coimbra. Jurisconsulto
Escreve à quinta-feira