Naya, a cadela que mudou a vida de duas crianças autistas

Naya, a cadela que mudou a vida de duas crianças autistas


Santiago foi diagnosticado aos quatro anos com autismo, depois de uma arritmia. Até à chegada da cadela Naya, não conseguia dormir sozinho. A importância dos cães nas famílias que têm membros autistas está provada. Sara, com dois filhos autistas, conta a sua história.


Quando Naya chegou a casa da família de João e Sara, em novembro, as mudanças nos seus dois filhos – Santiago, de seis anos, e Francisco, de três, ambos diagnosticados com autismo – foram imediatas. Santiago, que nunca tinha conseguido dormir na sua cama, sozinho, e ficava sempre com os pais, dormiu logo a primeira noite no seu quarto, com o cão de água português preto aos seus pés. Francisco, que não conseguia largar as fraldas, conseguiu fazê-lo poucas semanas depois.

“A Naya é uma ajuda fulcral”, diz ao i a mãe Sara. Quando foi cedida à família pela Associação Portuguesa de Cães de Assistência (APCA), com apenas três meses, a família juntava-se lá fora para a treinar a fazer as necessidades. Sempre que ela conseguia, “era uma festa”, recorda a mãe. Quando Francisco conseguia fazer na casa de banho, Naya pagava-lhe na mesma moeda e “enchia-o de beijos”. “A Naya tem uma ligação fortíssima com o Santi e o Kiko e está sempre a ver quem precisa dele”.

Santiago confirma. “Adoro-a”, diz, sentado ao lado da mãe na mesa de jantar, onde conversamos, sem tirar os olhos de um dinossauro em plástico, grande e colorido, com que brinca. “Foi no meu aniversário que recebemos a Naya”, explica, num português estranhamente correto para a idade. “O Santiago falou muito cedo e sempre tudo muito correto, por volta dos nove meses. Nunca disse popó ou miau, era o carro e o gato, por exemplo. E se falávamos à bebé com ele, ele olhava para nós com cara de quem não percebia”, recorda a mãe.

Como tudo começou

Santiago sempre foi um bebé diferente. A gravidez foi normal, mas houve muitas complicações no parto, ao ponto de a vida de Sara e de Santiago ficarem em risco. “Ele ficou preso e eu tive uma paragem cardio respiratória”, conta ao i a mãe. Depois, numa das primeiras consultas, a pediatra alertou para a possibilidade de que ele tivesse alguma implicação com a escuridão, resultado do stress por que tinha passado ao nascer. E isso confirmou-se: “Ele nasceu de inverno e íamos ao shopping. Se deixássemos o carro no parque subterrâneo e ele estava a dormir e acordava, como era escuro, tinha ataques de choro que nem eu nem o pai conseguíamos parar. Nada o acalmava e era um bebé de meses”.

A implicação com a escuridão, um dos sinais do autismo, prolongou-se no tempo, e impediu sempre Santiago de dormir sozinho, até à chegada de Naya. Entretanto, outros sinais foram aparecendo, e os pais nunca pensaram no diagnóstico que, perto dos quatro anos, se confirmava. “Ao longo do tempo comecei a notar que ele tinha predileção por determinadas coisas. Brincava sempre com o mesmo boneco, e com a introdução dos sólidos na alimentação, surgiram vários sinais: quando lhe misturava a comida ele não comia, se separava a comida ele comia à vez, se enchia muito o prato ele rejeitava… Os ataques de choro, pela escuridão e não só, eram muito frequentes”, recorda a mãe.

O diagnóstico veio depois de um telefonema da escola. “A escola ligou-me a dizer que o Santiago não queria fazer ginástica porque tinha o coração acelerado. Ele não gosta de ginástica. E então fomos fazer um despiste e, no hospital, quando estava a fazer os exames que confirmaram que estava com arritmia, teve um episódio. Vomitou e chegou a mesmo a desmaiar.”, conta a mãe ao i. Uma consulta com um neuropediatra mostrou aos pais como todos os sinais tinha vindo a mostrar-se: os episódios de choro e gritos, o saltitar em vez de andar, o falar a cantar. “Não sei como não fiz logo a ligação”, lamenta a mãe.

Ao segundo filho, os pais já estavam mais atentos. Foi só em janeiro que o diagnóstico de Francisco foi confirmado, mas muitos dos sinais, ao longo do tempo, foram aparecendo também. “Chorou nos primeiros quatro meses, ininterruptamente. Falávamos com as terapeutas do Santiago e o tema era só o Kiko, e começaram a achar estranho”, continua a mãe. Além de autismo, o Francisco sofre também de hiperatividade.

Hoje, ambas as crianças andam em terapia. Por mês, por cada criança, os pais gastam 450 euros. Do lado do Estado, o apoio dá para pouco: apenas 160 euros. 60 de um subsídio por deficiência – assim olhada pelo Estado – e 100 para garantir o apoio de uma terceira pessoa em casa. “É irrisório, não dá para nada”, queixa-se a mãe, que fica em casa com as crianças, enquanto o pai trabalha. “Este ano, conseguimos a bolsa de apoio às terapias de uma associação. Pedimos o financiamento porque o Francisco foi diagnosticado este ano e iam passar a ser dois com terapias”, explica a mãe.

Mesmo diagnóstico, características diferentes 

Apesar de serem os dois autistas, os irmãos Santiago e Francisco são muito diferentes. Santiago, por exemplo, adora música – uma das terapias que faz, aliás, é precisamente musicoterapia. O gosto para a música nasceu com o Anselmo Ralph. Hoje, o gosto ampliou e gosta de outros artistas, como o Agir, os HMB ou o Salvador Sobral. “Já foi a vários concertos e é amigo de todos. E todos o atraem por terem alguma característica diferente”, explica a mãe.

Como tem pouco mais de três anos, é difícil por agora perceber os gostos de Francisco, mas no que aos brinquedos diz respeito, por exemplo, gosta muito de animais e comboios. Já Santiago, adora dinossauros. E se Francisco tem hipersensibilidade à roupa – só veste algodoes, a roupa não pode ter etiqueta e não aceita todas as estapagens nas camisolas –, Santiago tem hipersensibilidade auditiva e não suporta ruído. Ambos têm hipersensibilidade alimentar: Francisco aceita a fruta toda e a nível de pratos deixa misturar algumas coisas, enquanto Santiago é mais rígido e só come alimentos amarelos, brancos e castanhos. “Muita informação faz-lhe muita confusão”, justifica a mãe.

Ambos gostam de tecnologia e passam algum tempo a jogar nos seus tablets. Santiago criou mesmo uma página no Facebook – “Santiago o menino do laço” (por gostar muito de laços) –, onde é seguido por várias crianças como ele. Da página nasceu um blogue, e do blogue um livro infantil, que será publicado nas próximas semanas.

Os dois irmãos não brincam juntos porque têm interesses diferentes e são diferentes. “O Francisco outro dia tinha uma pistola – que odeio, mas pronto – e dizia ‘isto é a minha espada’. E o Santiago ia ter com ele e dizia ‘não é, Francisco, é uma pistola’. É que o Santiago não consegue perceber que podemos dizer que uma pistola até pode ser um cão”, explica a mãe.

E como é que a mãe define o autismo? “Como antecipação. Tudo tem de ser muito preparado, tem de haver preparação física e visual, e não pode haver planos de última hora”. É meio caminho andado para um episódio: a estrutura corporal fica rígida, as crianças ficam em posição fetal, batem nos ouvidos, gritam ou correm. E devem os pais esconder às crianças que são autistas? “Não. Se há maneira de os ajudar é eles saberem o que têm e não serem só uns miúdos estranhos. A ideia não é que justifiquem qualquer atitude com o autismo, mas saberem defender-se. A ideia é que eles sejam o máximo autónomos possível porque um dia vou faltar. E a Naya também entra aqui, sem dúvida”.

Como ter um cão de assistência?

A Associação Portuguesa de Cães de Assistência (APCA) nasceu apenas há quatro anos, mas já faz a diferença na vida de muitas famílias. Neste momento, a associação é maioritariamente procurada por famílias com filhos autistas, mas é sabido que os animais são ajudas preciosas também para pessoas com diabetes, epilepsia, mobilidade reduzida, surdez ou deficiência visual. Rui Elvas explica que “uma família que quer um cão, manda-nos um e-mail ou telefona-nos para ver como é que o processo funciona”. Depois, a APCA valida a urgência, conhece a família e avalia a necessidade ou não de haver um cão na família. 

Rui Elvas, presidente da APCA, explica ao i que “nem todas as famílias podem pagar estes cães, que exigem um treino especial”. Por isso, a associação tira parte do dinheiro que recebe das famílias que conseguem pagar o cão e aplicam o dinheiro num cão para uma família com poucas possibilidades. “Conseguimos ajudar uma em cada cinco famílias”, diz Elvas, que enumera as vantagens que um cão traz numa família em que um dos membros é autista. “Há uma maior interação social, maior facilidade de integração em espaços onde as crianças com autismo não se sentem muito confortáveis e maior estímulo”.

Por conhecer as vantagens que os cães trazem às famílias que deles precisam, a APCA esteve empenhada, em 2017, em reunir-se com todos os grupos parlamentares para conseguir a aprovação do financiamento de cães de assistência no Orçamento de Estado para 2018. O esforço deu frutos e o financiamento foi contemplado no OE, mas até agora nada aconteceu. “Tudo demora em Portugal. Estamos em abril e a Segurança Social ainda não fez nada…”, lamenta Rui Elvas.