Zé da Mouraria. Uma lenda do bacalhau na travessa

Zé da Mouraria. Uma lenda do bacalhau na travessa


Um pequeno restaurante de Lisboa que compra todos os anos muitos milhares de quilos de bacalhau. Uma aventura que começa na Islândia e acaba aqui no prato


Chegam por volta das sete da manhã para preparar os almoços. São seis e afadigam-se organizadamente a trabalhar. Já não são precisas palavras: todos, as duas mulheres e os quatro homens, sabem o que têm de fazer. Muita coisa começou a ser trabalhada de véspera, mas muito mais é feito de manhã. O grão é posto a cozer a esta hora; só assim estará pronto para acompanhar o bacalhau com batatas a murro assim que chegarem os primeiros clientes, por volta das 12 horas. No Zé da Mouraria, a casa está sempre cheia para comer petiscos como o bacalhau e as iscas. Virgílio Oliveira é o dono. Trabalha na hotelaria e restauração desde criança. “Para mim não foi uma escolha: os meus pais morreram quando tinha nove anos e a hotelaria, antigamente, não só dava trabalho como alojamento”, relembra. Até aos 39 anos andou a aprender, até que decidiu abrir o Zé da Mouraria, numa antiga carvoaria. Por isso há gente que o vê e lhe chama, naturalmente, “sr. Zé”, apesar de se chamar Virgílio. Este minhoto criado no Casal Ventoso fez carreira como chefe no Algarve, onde abriu diversos restaurantes de hotel. Também cozinhou em Angola, antes de voltar a Lisboa e comprar o antigo Zé dos Grelhados. O Zé do nome ficou no novo restaurante para assinalar o galego que abriu a carvoaria original no mesmo local, há mais de cem anos.

O negócio e a afluência foram crescendo de tal forma que teve de arranjar uma sala num prédio ao lado. “Esta ligação que vê era ilegal, tive de falar com um cliente meu, o Pedro Santana Lopes, que na altura era primeiro-ministro, para a fazer. Foi ele que me disse que podia avançar com a obra”, garante Virgílio. Inicialmente, a clientela era sobretudo portuguesa; hoje, os turistas fazem mais de meia sala todos os dias. “É um bocado boca a boca, saem notícias sobre nós na Croácia, foi feito um documentário no Japão e as pessoas vêm vindo, gostando e recomendando”, explica o dono. De tal maneira cresceu a popularidade que agora tem dois restaurantes com o mesmo nome, um que só serve almoços e outro que só serve jantares. A sala tem azulejos e a declaração está completa com dezenas de fotografias dos clientes mais conhecidos e típicos. Virgílio vai-nos apontando a sua pluralidade: tanto tem Santana Lopes como António Costa, entremeado “pelo filho de Mário Soares”, como nos descreve.

Podemos usar como medida do sucesso a quantidade de bacalhau que compra: “Vê estas postas? São cortadas especialmente para nós”, mostra-nos com orgulho. “Compro todo o bacalhau à Riberalves, eles têm na fábrica uma piscina só para nós. São cerca de duas toneladas por mês”, diz.

Chegam os primeiros clientes, entre os quais um turista sem marcação, a quem dizem inicialmente que está tudo reservado mas, a meio da conversa, o sr. Luís, responsável pelas marcações, lá consegue arranjar-lhe um lugar. Explicam-lhe que deve pedir uma meia dose, que aqui as doses são muito grandes. Na outra ponta da sala instala-se um grupo de polícias da PSP que tinham marcado previamente. As grande postas de bacalhau são assadas, partidas, retiradas as espinhas e servidas com grão, grelos e couve galega, batata a murro e azeite. Uma dose custa 17,50 euros e dá, se comer bastante, para dois. O sucesso dos pratos confecionados no Zé da Mouraria está muito na arte de escolher bons produtos, de modo a que o peixe saiba a peixe, e a carne a carne. Nada é deixado ao acaso, desde o pão alentejano aos queijos encomendados. “Temos aqui o nosso vinho verde, que é feito especificamente para nós, com o rótulo ‘O Elétrico’”, diz Virgílio com orgulho, num duro trabalho “em que a maioria dos dias começamos às sete horas e podemos sair daqui quase às 22”. Sobre a importância da pesca sustentada do bacalhau não fala muito, apenas diz que escolheu o fornecedor por ser de confiança. “Nunca nos faltou e garante que o produto é de qualidade”, afiança, apontando para as grandes postas de bacalhau demolhado, provavelmente pescadas na Islândia.