A vida está tão estúpida que, na morte de uma figura destacada da nossa vida pública, um ex-governante, uma figura de relevo na vida do PSD, mas sobretudo um Professor que marcou gerações de alunos universitários em Coimbra, dão-nos com o currículo dele. Os obituários alinhavam os cargos, títulos, ocupações desenhando a semelhança mais fria com um homem, esse prestígio público incapaz de sentir seja o que for. João Calvão da Silva morreu na manhã de terça-feira aos 66 anos, vítima de doença prolongada. Os vários amigos, colegas e alunos que o SOL contactou traçam um retrato mais do que firme, sem fugir a um mesmo conjunto de características: a proximidade, a alegria e a simplicidade, a inteligência e o sentido prático, a disponibilidade que sempre demonstrou para ajudar os amigos, e a facilidade com que os fazia.
Nas redes sociais, não foram poucos os alunos que manifestaram a sua admiração por Calvão da Silva ao partilharem a notícia mais ou menos indiferente de um jornal ou outro. A substância era invariavelmente a mesma, pouco mais do que o percurso, os cargos, e esse facto triste, final. Como para completar o quadro, adiantavam algo a nível pessoal. Foi o que fez Carlos Sá Carneiro: «Era bem mais do que um académico brilhante, bem mais do que um político de corpo e alma. Era um Senhor, um amigo, alguém que nos acolhia como se fôssemos família.»
António Pinto Monteiro, também catedrático da Universidade de Coimbra, alguém que desde os anos de juventude teve um percurso quase paralelo ao de Calvão, fala na grande saudade que o amigo lhe vai deixar. Os dois entraram juntos para o curso de Direito em 1970, formaram-se em 1975, fizeram a pós-graduação dez anos depois, em 1990 doutoraram-se, e, no final dessa década, eram os dois catedráticos da Universidade. Foram vizinhos muitos anos, jogavam futebol de salão, e houve toda essa pontuação revirada da juventude que, anos mais tarde, é a matéria-prima de quem gosta de se rir. Pinto Monteiro tem dificuldade em escolher entre o jorro de memórias que o assaltam ao pensar em tudo o que partilhou com o amigo, mas fala da boa disposição, tão grande que nunca o viu dar pão às angústias. Uma grande argúcia num espírito prático que, muito cedo, dado o desembaraço face a esses estados de melancolia em que se perdem alguns, tinha força de sobra para que a causa pública o motivasse. Pinto Monteiro lembra como a sua simplicidade e o jeito de brincar com tudo fazia com que se inserisse em qualquer meio. Era popular, sabia ensinar sem usar de formalidades, e os alunos gostavam dele porque era claro e deixava margem para que se divertissem, para que as obrigações não se transformassem numa chateza.
Deste Professor que abria o sorriso antes de qualquer manual, fala-nos Paulo Mota Pinto, seu aluno em Coimbra e grande amigo. Diz recordar a «clareza e brilhantismo com que fazia parecer simples as questões jurídicas mais complexas». Garante que, como ele, «os seus alunos nunca o esquecerão». Adianta que Calvão aliava um raciocínio rápido à grande capacidade de trabalho e tensão de vontade, bem como um «elevado sentido do dever cívico».
Transmontano e orgulhoso disso, Calvão nasceu numa pequena aldeia de Montalegre, em fevereiro de 1952. De origens humílimas, aos 12 anos bateu à porta do Mosteiro de Singeverga, em Santo Tirso, com o objetivo de seguir a via monástica. Quatro anos depois foi para Lamego, onde fez o liceu, no Colégio da Ordem Beneditina, ingressando a seguir na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Na política e nas muitas funções executivas na esfera pública e privada, Alípio Dias foi um compagnon de route. Conheceram-se em 1983, no Conselho Nacional do PSD, e os caminhos dos dois não mais se desataram. A tendência para acolher os amigos numa família alargada é prevalecente no percurso deste filho de agricultores, que viu os pais trabalharem de sol a sol para que os filhos pudessem ter um horizonte que lhes elevasse a cabeça para lá desse que a enxada arranca à terra dura. Alípio Dias fala da relação fraternal que tinham, uma vez mais assente na disponibilidade constante e no sentido de solidariedade de Calvão da Silva. Lembra o permanente sorriso do amigo, a permanente jovialidade.
Luís Marques Mendes falou ao SOL da amizade que mantinham há 30 anos, das duas semanas de férias em que coincidiam todos os Verões no Algarve, de como Calvão, «uma pessoa encantadora», se distinguia da maioria da classe política, por colocar os princípios e os valores acima de tudo. Sendo um «companheiro muito leal», foi seu vice-presidente quando Marques Mendes liderou os sociais-democratas. E dá relevo ao seu tão conceituado percurso académico, notando que fez dele um homem que dava mais valor ao conteúdo do que à forma, e aliava isso a uma grande cultura – tinha «muito mundo» – sem nunca ser distante, frio ou arrogante. «Um óptimo conversador», Marques Mendes refere que tinha em Calvão da Silva um excelente parceiro de treino para o seu espaço de comentário semanal na SIC.
Também o conheci. Era padrinho da minha irmã, e visita habitual de casa dos meus pais. Lembrando-o, vejo sempre o sorriso, tão caloroso que, de qualquer espaço, fazia uma sala de estar. Lembro-me da alegria com que falava dos jogos de futebol do Benfica e da selecção que ia ver com os filhos, como adorava o ritual de ver a telenovela comentando-a com a filha, a mais nova. E como, sempre que não estava em casa à hora que esta começava, lhe ligava, e falava com um tão grande carinho que, mesmo quem estava ao lado, se sentia envolvido, tocado por aquele desmedido afeto.