Crónica de um silêncio ensurdecedor sobre o interior


A única coisa que se vê acontecer é uma punição implícita dos habitantes do campo e matas do país rural que teimam em aí viver (que não são necessariamente os donos das matas e terrenos não limpos)


Por estes dias, a chuva vem caindo em abundância, ao ponto de já se falar em cheias, e as populações, no meio da lama, têm de cumprir os prazos das limpezas dos terrenos sob a ameaça de pesadas coimas a quem não o faça, enquanto Costa (que vive no país bom, em oposição àquele onde acontecem tragédias, normalmente imputáveis ao anterior governo) se gaba do sucesso da sua governação e enaltece a sua forma de fazer diferente.

Além destes dois incontornáveis e inevitáveis acontecimentos, da chuva que o Estado não controla e das coimas de que o Estado não prescinde, ou de Costa a gabar-se de si próprio, não há outras notícias sobre o mundo rural.

Compreensivelmente, o governo está em pânico com a possibilidade de ter, outra vez, os mesmos resultados da soberba com que tratou o tema da protecção civil e do combate aos incêndios no ano passado, brincando ao nepotismo com a já costumada conivência dos seus parceiros de coligação na nomeação/substituição dos representantes da Protecção Civil e cativando verbas necessárias aos meios de combate quando já estava avisado do cenário meteorológico de excepção, como foi muito evidente, e público, nos incêndios de Outubro, que contribuíram para o saldo final de mais de uma centena de mortos.

No entanto, caminhamos aceleradamente para a estação da Primavera, que precede o período de alerta máximo de incêndios, e não há nota nem difusão suficiente (se alguma houve) – para além de algumas notícias sobre a reconstrução das casas de quem delas precisa, e nem sequer todas – de nenhuma relevante campanha de sensibilização e aconselhamento para a prevenção dos incêndios e para a protecção dos habitantes do meio rural em cenários de incêndio rural ou florestal.

Note-se que a tragédia de Pedrógão eclodiu em Junho e, portanto, pouco mais de dois meses nos separam dessa data.

Não estamos, pois, a uma distância que permita alguma margem para recuperação. Aliás, se virmos bem, hoje já pode ser tarde!

No entanto, a única coisa que se consegue nesta data perceber junto das fustigadas e abandonadas populações dos incêndios do ano passado, fora das inaugurações com as TV’s, agora distraídas com a chuva e a procurar sinais de sobrevivência nos rebentos novos nas árvores queimadas, é esta pressão sufocante de ter de fugir às coimas limpando as extremas dos terrenos hoje um pouco menos negros das chamas passadas.

É possível que tenha escapado ao Estado que os abandonou então, ou que não lhes valeu e lhes tarda, que nesta data, meses depois da tragédia, para muitos dos proprietários, todo o dinheiro ainda faz falta, senão para sobreviver, também para reerguer as suas casas ou as explorações que ainda aguardam a reconstrução e agonizam com a burocracia central para receberem os fundos que de pronto lhes prometeram, mas que tardam em chegar.

Ao Estado central, tão rápido a encontrar os emails através dos quais coage à limpeza, escapa também que há milhares de agricultores a meio dos seus projectos de investimento e instalação e a quem o dinheiro das limpezas faz falta para devolver valores das comparticipações estatais e comunitárias de explorações que arderam ou apenas para fazê-las funcionar.

Ao mesmo Estado central que aparentemente erigiu como único acto, do que se conhece até agora, para todo o (eventual) plano de prevenção de incêndios num ano de inverno algo tardio, a necessidade da limpeza dos terrenos até à data de 15 de Março a pensar em 31 de Maio, pode perguntar-se com alguma desconfiança, cortado o mato nesta altura e com a chuva que entretanto cai, como estarão em dois meses estes matos? É, aliás, a pergunta que todos se fazem.

Mas mais: num cenário em que um número importante de factores que o relatório independente dos incêndios de Pedrógão aborda, e em que inexplicavelmente, e sabendo-se já que com conhecimento da tutela e recusa de meios, ardeu, meses depois da incineração de Góis e de Pedrógão Grande, também quase todo o Pinhal de Leiria e um sem-número de concelhos seguidos da Beira Alta, desde Arganil até quase ao centro de Viseu, não há nota de nenhuma medida nova ou estratégia disruptiva a não ser o enorme enfoque nas coimas que podem vir a ser aplicadas.

Nada sobre prevenção, nada sobre planos de emergência, nada sobre a mudança de modelo, e, segundo se percebe, quase nada sobre os apoios prometidos a quem tudo ou quase tudo perdeu o ano passado, mas já a pesada factura das limpezas sob pena de coimas é presente e recorrente.

Outra vez, a abordagem da ruralidade e dos seus problemas, passado um ano, está por fazer, e da que foi feita talvez se safe apenas a do cadastro dos proprietários.

A única coisa que se vê acontecer é uma punição implícita dos habitantes do campo e matas do país rural que teimam em aí viver (que não são necessariamente os donos das matas e terrenos não limpos), com esta ideia de que só a eles e às limpezas se deve o sucesso ou não do combate aos incêndios que Lisboa, na sua altivez e inspiração, lhes impõe para sua protecção, sem que nada, nem sequer os documentos oficiais, sirvam para protegê-los do poder central, como o relatório de Pedrógão tão bem evidenciou.

Aos habitantes está, pois, vedada a possibilidade de fazer as mesmas cativações dos seus recursos que contribuíram para a desgraça, e enquanto fogem às coimas talvez não fosse pior dar-lhes uma luz sobre a existência de políticas de protecção do interior que lhes dêem uma perspectiva de futuro, além da resiliência aos incêndios de Verão, e pelo menos apresentar qualquer coisa sobre a entidade de supervisão que o relatório dos incêndios aconselha e que António Costa, como de costume, anunciou com gravidade e circunstância e que, depois desta encenação urbi et orbi, terá desaparecido dos radares.

Passado o impulso inicial, tudo indica que o momento de promover a verdadeira coesão do interior e do litoral não germinou. Com as Beiras Alta, Baixa e Litoral destruídas na quase totalidade pelo fogo, Costa fala antes no sucesso do crescimento económico e do cumprimento das metas europeias, remetendo este tema, como o da saúde, das escolas e dos transportes, à condição de eventual dano colateral desse sucesso.

Mantém-se por isso no ar a mesma urgência de pânico e descontrolo que tivemos o ano passado. Na realidade, nada de novo se perfila ou anuncia. Resta-nos preparar-nos para o pior desejando o melhor.

Um ano depois, este problema que era trágico ameaça passar à condição de desumano.

 

Advogado na norma8advogados

pf@norma8.pt

Escreve à quinta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990