“As Mil e Uma Noites”, de Miguel Gomes, “São Jorge”, de Marco Martins, “A Fábrica de Nada”, de Pedro Pinho. E agora “Colo”, de Teresa Villaverde. Desde a chegada da troika a Lisboa, o cinema português, ele próprio em crise, deteve-se a olhar para aquilo em que o país se transformava quatro vezes. Primeiro numa grande crónica em três partes sobre todo um tempo, depois duas vezes em dois olhares sobre os menos privilegiados. No mais recente filme da realizadora de “Mutantes”, que teve a sua estreia internacional na competição do Festival de Berlim, em 2017, a partir da classe média, para a história que poderia ter sido a de qualquer um de nós. Depois de mais de um ano de espera, chega finalmente às salas o filme que faltava ver para fechar um ciclo. Que, nota Teresa Villaverde, será perigoso olhar como passado. “As pessoas que foram despejadas, por exemplo, não foram agora realojadas de volta nas casas que perderam.” Não será então de todo um filme de uma época este, que há um ano víamos em Berlim terminar em suspenso, com um título que não teve tradução. Não havia. “Colo” será palavra como as paredes desta casa de uma família a desmoronar-se. Interpretada por Beatriz Batarda, a Mãe, João Pedro Vaz, o Pai, e Alice Albergaria Borges, que é Marta, a quem se junta uma amiga, Júlia – papel que a realizadora entregou à sua filha, Clara Jost.
Quando “Colo” estreou em Berlim o país estava já a levantar-se da crise, já num ambiente diferente daquele em que a Teresa partiu para este filme, que chega agora às salas portuguesas num tempo em que aqueles anos estão mais distantes. Mesmo assim, continua um filme atual. Talvez mais do que qualquer outro dos que se fizeram naquele tempo, sobre ele.
Acho que tudo o que se está a passar no filme se passa hoje ainda. A situação do país melhorou bastante, isso é um facto, mas, se pensarmos bem, melhorou no sentido em que se retomou uma esperança que se tinha perdido. Ainda há muita gente que não tem trabalho, que não recuperou o emprego que perdeu. Também as crises que nessa altura surgiram dentro das famílias – ou porque uma pessoa perdeu o trabalho ou porque tiveram que abandonar as suas casas e ir para a casa dos pais. Voltar para casa dos pais é uma coisa de grande violência e que fez com que muitas famílias se separassem. Não podemos achar que por agora o país estar melhor tudo isso se resolveu na vida das pessoas. Em muitos casos o que aconteceu fez com que agora recomeçar ou reconstruir seja muito difícil. Outra coisa que acho que é importante é que, como no geral as coisas estão melhor, as pessoas que ainda não estão bem sentem-se ainda mais sozinhas, mais derrotadas.
E envergonhadas.
Como é lógico.
“Colo” neste ano de 2018 vem obrigar-nos de certo modo a parar para voltar a olhar para trás. A questionarmo-nos sobre se esta quase euforia – e digo euforia em contraste com o estado em que vivíamos antes enquanto sociedade – em que estamos agora, enquanto país. Lia há não muito tempo um artigo de um jornal galego que apresentava os portugueses como os nórdicos do Sul da Europa e Portugal como o exemplo de país que conseguiu ultrapassar da melhor forma uma crise severa. Talvez seja um retrato demasiado otimista este.
Percebo bem essa questão. Naquela altura as pessoas sentiam-se mesmo envergonhadas por aquilo que lhes tinha acontecido. O que, se pensarmos, é um sentimento estranho. Se a pessoa de repente perde o emprego porque a empresa faliu, porque há de se sentir envergonhada? Não há razão para isso. Pode sentir-se aflita, angustiada…
Isso vem provavelmente como uma extensão, ou assimilação, daquele discurso promovido pelo governo da altura de que todos tínhamos a nossa parte de culpa na crise, pela repetição à exaustão da ideia de que durante anos todos tínhamos vivido acima das possibilidades.
Não sei se essa ideia do viver acima das possibilidades passou para as pessoas a nível individual, porque uma pessoa que de repente perdeu o emprego e que por isso está com problemas saberá interiormente se viveu acima das suas possibilidades ou não.
Mas houve uma uma espécie de nacionalização da culpa.
Sim. E uns terão vivido acima das possibilidades, não estou a dizer que não, mas tudo isso foi muito estranho, realmente. Por isso é que, voltando ao filme, acho que o “Colo” pode ser interessante agora. Se calhar agora que estamos como grupo a sentir-nos melhor e menos deprimidos é uma boa altura para, com a cabeça fria, analisarmos o que nos aconteceu – e o que ainda está a acontecer.
E que já não estamos a ver, ou a querer ver.
Retomou-se a esperança, e isso acho que é muito positivo. Parece uma palavra muito poética e muito fora da realidade, mas é uma coisa muito importante. Qualquer pessoa precisa para viver de esperança, até nos momentos mais cruéis possíveis. Mesmo sob uma guerra, a pessoa tem que ter esperança. Se não tiver esperança, nem sequer tenta sair de casa para ir buscar pão. O que aconteceu foi que as pessoas começaram a perder a esperança, em tudo, e isso é uma coisa que como sociedade devíamos tentar debater e perceber. É muito perturbadora a forma como vem uma crise financeira e, de repente, isso altera tanto a vida e a cabeça das pessoas, pessoas adultas. E como passado três anos a situação melhora e já está tudo ótimo. Como sociedade adulta devíamos refletir sobre isto. Acho que o filme é atual nesse sentido de nos fazer questionarmo-nos sobre quem somos, porque nos deixámos abalar tanto e porque acreditámos como sociedade naquilo que nos foi dito. E como é que, depois de tudo o que aconteceu, o partido mais votado nas eleições foi o mesmo partido que estava no poder. É muito estranho, quase incompreensível para mim. E também não deixa de ser estranho como é que também de repente se arranja uma forma de ser um outro partido a ir para o governo, e toda uma outra forma de ver o poder.
Foi esse o momento em que, quase que da noite para o dia, se evaporou essa grande depressão coletiva.
Estamos todos felizes quando há pouco tempo não estávamos e, pelo sim, pelo não, votámos no mesmo partido. Votámos, entre aspas, eu não votei. Nos momentos de maior calma, em que as coisas estão melhor, se calhar é mais fácil pensar, e acho que devíamos todos pensar. Este filme não traz resposta nenhuma.
Nem esperança.
Nem uma coisa nem outra. Acaba num momento de suspensão. Não acaba nada ali. Tudo o que aconteceu a cada elemento daquela família e a forma como eles se separam, em parte até acidentalmente, é uma suspensão. Não sabemos o que vai acontecer nem como se vai resolver, mas sabemos que nada como está naquele momento pode ser definitivo.
Porque quis deixá-lo assim?
Porque assim como há muitas coisas que ficaram por perceber do que se passou e que continuam muito confusas para todos agora, já na altura eu tinha essas questões. Para onde vamos, para onde vão estas pessoas? Uma família de classe média completamente comum que de repente se vê em vias de se desmoronar, com sensação de que não houve razões suficientes para um cataclismo tão forte. Mas é isso que acontece. Temos histórias terríveis de pessoas que se suicidaram por causa das dívidas, e questionamo-nos sobre como é que isso é possível. Como é que uma pessoa se sente tão desesperada e tão sozinha ao ponto de se suicidar por causa de uma dívida? Muitas vezes isso tem a ver com a vergonha de pedir ajuda aos amigos, à família. Muita coisa podia ter sido evitada e não foi porque as pessoas vivem num grande isolamento. Imaginemos que daqui a uns anos vem outra crise: se não tratarmos também disso, estaremos mais bem preparados? Se calhar não. Se não compreendermos porque reagimos com tanta fragilidade, como poderemos ser capazes de reagir, de não ficar paralisados? O que aconteceu em Portugal foi que as pessoas ficaram paralisadas.
“Colo” veio, como “As Mil e Uma Noites”, “São Jorge” e “A Fábrica de Nada”, num momento em que o cinema português parou para olhar para o que estava a acontecer. “Colo” distingue-se deles por ter escolhido contar isto a partir da classe média, não dos menos privilegiados. Porque era a realidade que tinha mais próxima?
Continuo a achar que é muito perigoso falarmos disso no passado. As pessoas que foram despejadas, por exemplo, não foram agora realojadas de volta nas casas que perderam. Na altura, quando escrevi o filme, não sabia que a reviravolta ia dar-se tão rápido, ninguém sabia. Parecia tudo uma coisa mais sem fim. Que, aliás, é a caraterística da depressão: a pessoa tem a sensação de que não vai haver saída nunca mais. O que estava a acontecer a Portugal era uma coisa tão forte e que se via tão em todo o lado que acho que era difícil naquela altura uma pessoa escrever algo que não tivesse qualquer coisa a ver com isso. Todos sabemos que era uma coisa poderosa. Eu senti, todos nós sentimos. Bastava ir a um café e ver a cara das pessoas, passar por um lugar e ver tudo à venda. E não só toda a gente conhecia alguém que tinha ficado sem trabalho ou que estava com problemas de dívidas, como também se via na cara das pessoas esse sentimento de “se calhar vou ser eu o próximo”. Comecei então a trabalhar sobre isso, mas interessou-me mais olhar para o peso disso dentro de uma casa, dentro de uma família.
Que era o que não estava a ser mostrado todos os dias. Do resto, dos números, já sabíamos.
E dentro de uma família pequena, um pai, uma mãe e uma filha – e uma filha adolescente. Essa coisa da família de três era uma coisa que me interessava há já muitos anos. Às vezes dava por mim a observar, sobretudo no verão, famílias de férias: o pai, a mãe e o filho ou a filha, e estamos a vê-los num restaurante e ninguém fala com ninguém, parece que não se conhecem. O adolescente está ali como que enclausurado à espera que aquilo acabe. Isso sempre me interessou. Sobre isso, um problema em casa com um pai ou uma mãe deprimidos – como é que o filho vai reagir a isso? Como vão conviver uns com os outros quando aquela união da família já era frágil?
A família pode ser várias coisas, incluindo um grande centro de conflito.
Pior do que o conflito é a ausência dele. Quando já ninguém fala com ninguém, quando ninguém se conhece. Os apartamentos em que se vive nas cidades são cada vez mais pequenos e, mesmo assim, as pessoas estão separadas. A pergunta que me faço, e é mesmo uma pergunta: se fôssemos mais fortes enquanto grupo o que aconteceu teria sido um golpe tão, tão duro?
Está com isso a dizer que independentemente da fase que atravessemos, somos uma sociedade de alguma forma doente, moribunda?
Doente é uma palavra muito forte, sendo até capaz de ser verdade. Estamos desligados uns dos outros, isolados. Tendemos a comunicar pouco aos outros aquilo que é mesmo importante para nós. Estamos a desenvolver relações mais superficiais.
E isso não vemos só nesta família no centro de “Colo”, também em tudo o que a rodeia. A Júlia, a amiga desta filha, chega àquela família num momento em que não encontra o apoio de que precisa na sua, para, ironicamente, encontrar abrigo numa que não conseguiu manter-se junta a ela própria.
Aquele pai já não consegue chegar à filha e, de repente, tem uma necessidade enorme de fazer alguma coisa bem, algo de útil.
Como se encontrasse na amiga da filha uma salvação para si próprio.
E faz uma coisa que compreendemos mas que não terá muito futuro. Se calhar de forma inconsciente para se salvar a ele precisa de salvar outra pessoa. Só que a ideia dele de salvação também não vai resolver nada a longo prazo.
Em “Colo”, esta tragédia que foram os anos da crise vem nas coisas mais pequenas. Pequenos detalhes da rotina do dia a dia sobre os quais é colocado todo o peso daquilo que está a acontecer.
Quando o dinheiro que se tem ao fim do mês reduz drasticamente e se tem contas para pagar e obrigações, não acaba o dinheiro para tudo. Pode não haver dinheiro para eletricidade mas ainda há os telefones, por exemplo. Depois é preciso pensar nas coisas práticas: não há eletricidade, não há frigorífico, é preciso começar a comprar outro tipo de coisas para comer. Há muita coisa do dia a dia que vai ficando prejudicada.
Mas é nessas pequenas coisas que somos esmagados pelo peso da realidade.
Isso e a cobrança das dívidas pelos bancos. Interrogo-me muitas vezes sobre se o facto de não termos nunca tido uma guerra a sério dentro do nosso território não explica também esta nossa atitude de não reação. Vemos que em Espanha, por exemplo, as pessoas ficaram revoltadas, não ficaram apáticas. Não sei se não virá daí esta nossa tendência para a depressão e para estarmos sempre à espera que alguém de cima venha resolver os problemas. Durante muito tempo disse-se que isto vem dos 40 anos de fascismo, mas Espanha também o teve. A única razão que consigo imaginar será essa. Termos sido dos poucos na Europa que não teve uma guerra no seu território. Quando há uma guerra e tudo é destruído, aprende-se que mesmo depois de uma guerra há uma saída. Se a pessoa combate para ver os problemas resolvidos, enquanto combate, não se isola, não fica deprimida. Somos um país com um clima extraordinário, com mar, e mesmo assim temos esta tendência para a depressão.
A presença tão forte de cores quentes neste filme vem como uma procura de um contraponto qualquer a essa depressão, uma procura de um equilíbrio?
A cor das paredes da casa, por exemplo, é muito quente para ajudar a criar a ideia de que a casa é um lugar acolhedor, um ninho. Quase como objeto que não tem que ver com as pessoas. A casa é um pouco despojada, não tem muita coisa, mas tem as paredes. E isso está lá assim como uma coisa a pulsar, quase como um personagem também. Eles vão perder a casa e só estão unidos por aquelas paredes. O filme não tem muitos exteriores, e vários deles são de noite, quando está tudo escuro e se vê pouca coisa. Tentei filmar como imaginei que eles se sentiam. Se eles se sentem sozinhos, não me pareceu que fosse no meio da confusão ou de uma multidão a melhor forma de mostrar isso.
Outra coisa que se salta à vista em “Colo”, em comparação com os seus filmes anteriores, são os planos abertos. Estamos muitas vezes a observá-los ao longe e há momentos em que nós, espectadores, nos sentimos quase espiões, ao mesmo tempo que não deixamos de sentir empatia.
Os meus filmes têm muitos grandes planos na cara das pessoas, acho que se pode dizer um bocado isso sobre o meu cinema no geral. Talvez me sentisse mais do lado dos personagens. Neste senti uma coisa diferente, senti-me a olhar para eles, mas a olhar com um certo pudor. A entrar numa casa onde vivem outras pessoas e eu sou uma pessoa que está a observar.
Isso vem daquela questão da vergonha de que falávamos no início?
Talvez. Eles não sabiam bem o que lhes estava a acontecer, eu também não, então a forma que escolhi para filmar foi observá-los como se, de alguma maneira, também eles se estivessem a observar a si próprios. Sobretudo no personagem do pai, que acho que é o personagem central, sinto que de alguma forma também ele se está a observar.
Para este personagem, do Pai, escolheu o João Pedro Vaz, um ator sobretudo do teatro. Foi uma escolha óbvia, imediata?
Há sempre um bocadinho aquela ideia de que é complicado ir buscar um ator de teatro para o cinema. Mas um ator de teatro se calhar compreende melhor o espaço e acho que pode ter sido isso que, mesmo sem pensar, me levou a procurá-lo. E depois demo-nos muito bem e acho que ele é um ator extraordinário. Um ator tão bom que é estranho o cinema não o ter ido buscar mais vezes. Conseguir ter uma imagem tão forte não fazendo praticamente nada é muito difícil. Só um ator muito bom e muito inteligente é que consegue fazer isso.
Entre o elenco está também a sua filha, Clara Jost, num papel completamente contrário a tudo o que uma mãe quererá para uma filha. Foi por isso?
De maneira nenhuma. A minha filha estuda Cinema mas para ser realizadora, só que entretanto tinha entrado num filme do Sandro Aguilar – até fiquei espantada porque sei que o que ela quer fazer no cinema é atrás das câmaras e não à frente – e eu tinha feito um casting e visto várias pessoas, mas de repente olhei para ela, perguntei-lhe e ela disse que sim. Não foi nada pensado, foi decidido até muito em cima da hora, e foi porque não tinha ainda encontrado uma pessoa para aquele papel. E sim [risos], ela é muito diferente da minha filha.