Um túnel contra o esquecimento


Foi, e é, possível furar uma serra para abrir um túnel. Só não é possível furar a demência dos senhores da guerra para abrir um corredor humanitário


“Para cá do Marão, mandam os que cá estão!”, assim escreveu Torga, e assim foi por séculos de esquecimento. A serra definia a fronteira de um país esquecido daquele pedaço, como de outros. Muita coisa ali mudou mas, desgraçadamente, ainda há por aí pedaços ao deus-dará.

O Túnel do Marão, finalmente inaugurado nem há dois anos, rasgou a imponente montanha e atreveu-se a desautorizar o persistente isolamento que subjugava as terras e as gentes de Trás-os-Montes. Hoje vai-se a ou vem-se de Trás-os-Montes sem agruras de viagem. A bela cidade de Vila Real, à beira-Corgo plantada – o Corgo é um afluente do Douro que por ali anda perto a exibir-se nos famosos vinhedos –, muito ciosa da sua ancianidade, até rejuvenesceu! A instalação da UTAD, Universidade de Trás-os- -Montes e Alto Douro, já lhe tinha trazido algum viço, mas era o cabo dos trabalhos lá chegar. Um breve aparte só para referir que o campus da universidade merece visita, pois quer a localização quer o parque botânico são magníficos. Senhora de património arquitetónico considerável, religioso e não só – a Casa de Mateus, de Nicolau Nasoni, porventura o monumento mais conhecido, é considerada um dos mais belos exemplares, a nível nacional, da arquitetura civil barroca –, a cidade abriga-se no aconchego do centro histórico, a cerca de 450 metros de altitude, e enfrenta com desembaraço os rigores do frio, e cobre-se de branco, e os do calor, e abriga-se à sombra dos parques, a molhar os pés no rio.

Foi, e é, possível furar uma serra para abrir um túnel. Só não é possível furar a demência dos senhores da guerra para abrir um corredor humanitário. É assim na Síria, em Gutha, o enclave rebelde às portas de Damasco. Noutros pontos do planeta martirizados nem se fala em corredores humanitários. A Guerra da Síria é mais mediática, porque são várias guerras, porque são muitos os interesses, porque há potências e superpotências a mexer os cordelinhos. A puxar a brasa à sua sardinha. A testar e a escoar arsenais de guerra. A medir forças e a ajeitar o melhor pedaço, porque ninguém quer sair a perder. No meio, e para garantir que a atenção mundial não se distraia a olhar para outro lado, estão os civis, velhos, mulheres e crianças, que os homens, esses são precisos, a sobreviver entre os escombros onde a morte pode ser uma bênção: acaba-se o sofrimento. Quando morrer pode ser melhor sorte do que viver, esgotaram-se as palavras para descrever a barbárie! Mas estes inocentes úteis são demasiado preciosos para que o belicismo os largue. Os donos do mundo, dados a estrategistas, resguardados nos cafofos da política podre, endrominam batalhões de combatentes, carne para canhão, que em nome de Deus ou do Diabo matam e morrem sem honra nem glória. Ficarão para sempre no saguão da História.

Vladimir Putin anunciou, excitado, perante uma plateia não menos excitada, que “nenhum país do mundo tem, no dia de hoje, as armas que nós temos. Ponto final”. Bombástico! Os congéneres americano e norte-coreano, belicistas e suficientemente destrambelhados, não se vão ficar a roer as unhas, vão tirar desforço. E assim rola o mundo. Para quê, então, repelir o esquecimento? Só quem bem ama não esquece. Eles fiam-se no mundial esquecimento.

 

Gestora, Escreve quinzenalmente