‘Senti esta revisitação como um tempo mágico’

‘Senti esta revisitação como um tempo mágico’


A Quetzal acaba de publicar uma nova versão da tradução de Frederico Lourenço da Odisseia. ‘Não existem traduções perfeitas’, avisa o helenista, mas esta foi aperfeiçoada e apresenta 300 novas páginas de notas e comentários.


Há 15 anos, Frederico Lourenço defendia no prefácio da sua tradução premiada da Odisseia (ed. Cotovia) que «as notas de teor filológico comprometeriam o enlevo e a comoção» proporcionados pela leitura da obra. Porém, sucessivos pedidos vindos de toda a parte levaram o tradutor a ‘render-se’ e a produzir, para a Quetzal, uma nova edição que inclui 300 páginas que permitem ao leitor «entrar na própria cabeça do poeta da Odisseia». Por email, o helenista explicou ao SOL qual considera ser a sua missão e como, a meio da tradução da Bíblia, encontrou tempo para revisitar o clássico de Homero.

A anterior tradução foi aclamada e premiada. Tínhamos a sensação de que era a tradução ‘definitiva’ da Odisseia para português. Por que sentiu que precisava de melhorá-la?

Para mim não há traduções definitivas, nem a anterior tradução foi ‘aclamada’ ou ‘premiada’ por mim, como deve calcular. Representou o melhor que eu era capaz de fazer na altura em que foi publicada (2003), mas para obras com a complexidade e a exigência da Ilíada e da Odisseia não existem traduções perfeitas; o que há é aproximações. Pude melhorar muitas coisas que agora ficaram aperfeiçoadas, mas sobretudo o sentido desta nova edição são as 300 novas páginas de notas e comentários ao texto, que levam os leitores a entrar na própria cabeça do poeta da Odisseia, por assim dizer.

O trabalho que tem feito a traduzir a Bíblia enriqueceu esta tradução da Odisseia? Levou-o a aperceber-se da necessidade de certas mudanças?

O trabalho que estou a fazer de traduzir a Bíblia deu-me a medida da imprescindibilidade das notas e dos comentários. Textos como as epopeias homéricas e a Bíblia deram origem a um estudo crítico aprofundado desde o século XIX. É importante os leitores participarem da discussão crítica sobre estes textos e inteirarem-se das principais questões. É para isso que elaborei as notas: para os leitores terem os elementos necessários para perceberem tudo o que de mais importante está em causa nestes textos extraordinários.

No Prefácio da edição da Cotovia dizia claramente: «Não tenho dúvida de que notas de teor filológico comprometeriam o enlevo e a comoção que se querem indissociáveis da experiência de ler/ ouvir a história do retorno de Ulisses». Mudou de opinião?

Não, continuo a achar que notas críticas que explicam (e em grande medida desmontam) o texto homérico destroem um pouco do encantamento ingénuo de ler o texto. Mas hoje considero que não há interesse em ler Homero ou a Bíblia de forma ingénua. São livros para adultos, onde encontramos todo o esplendor e toda a miséria da existência humana. São também textos que levantam grandes problemas quanto à sua autoria, autenticidade, transmissão textual e outros aspetos. Fico contente por saber que os leitores de língua portuguesa têm como entrar nessas problemáticas fascinantes, graças ao meu trabalho.

Estando a meio dessa tarefa hercúlea que é traduzir a Bíblia, dando aulas em Coimbra e tendo ainda, presumo, outras solicitações, como encontrou tempo para voltar à Odisseia?

O segredo está em eliminar aquilo que descreveu como ‘outras solicitações’. Não aceito outras solicitações. Dou aulas e trabalho nestes grandes projetos de tradução. É essa a minha missão. Dotar a língua portuguesa de traduções críticas de Homero e da Bíblia.

Esta tradução foi uma espécie de pausa para descansar do trabalho mais exigente da Bíblia?

Senti esta revisitação da Odisseia como um tempo mágico, de facto. Fiquei com pena de não ter tido tempo para fazer também as notas à Ilíada, mas isso não era conciliável nesta altura com o trabalho na Bíblia. Fazer também a Ilíada teria comprometido o meu cronograma de trabalho no Antigo Testamento. Nem sempre é possível fazer o que se quer; é preciso aceitar que só dá para fazer o que se pode.

Dispondo de um tempo limitado não poderá ser um desperdício traduzir duas vezes o mesmo livro?

Não percebo porque diz que traduzi duas vezes a Odisseia. O que fiz agora foi rever e aperfeiçoar a tradução que já tinha publicado e, sobretudo, como eu frisei, acrescentei-lhe notas. No entanto, mesmo que tivesse feito uma nova tradução do zero isso não me teria parecido um desperdício de tempo. Tal como não foi um desperdício de tempo para Alfred Brendel gravar a segunda integral das sonatas de Beethoven, ou para Maria Callas gravar a segunda Norma. O tradutor é um intérprete, não é um criador. É alguém que está ao serviço do autor cujo texto ele interpreta, traduzindo-o. Obras da genialidade da Ilíada e da Odisseia são inesgotáveis na sua capacidade de gerar novas interpretações e novas abordagens.

Creio que na introdução não toca neste assunto: tratando-se a Odisseia de um dos textos fundadores da cultura ocidental, foi transmitido ao longo dos séculos de forma ‘encadeada’, sem interrupções, ou foi ‘redescoberto’ nalguma época, como outros clássicos? O texto era conhecido, por exemplo, na Florença de Dante, no Portugal de Camões ou na Inglaterra de Shakespeare?

O texto da Odisseia começou a ser conhecido no ocidente em tradução latina a partir do século XIV, mas nenhum dos autores que citou (Dante, Camões ou Shakespeare) o leu em grego. No império bizantino a Ilíada e a Odisseia fizeram parte da escolaridade até à queda de Constantinopla, mas curiosamente a Ilíada era mais lida e estudada do que a Odisseia. Também existem mais papiros e manuscritos da Ilíada do que da Odisseia.

A sua passagem da Cotovia para a Quetzal foi pacífica? Os responsáveis da Cotovia aceitaram bem a sua saída depois de vários anos a trabalharem juntos?

Perfeitamente pacífica. Tive a alegria e o privilégio de ser editado pelo André Jorge na Cotovia e também a honra de ter sido editado pelo Zeferino Coelho na Caminho, dois grandes senhores do Livro no nosso país. Sinto-me igualmente grato e honrado pela colaboração com o Francisco José Viegas na Quetzal, onde o meu trabalho está a ser tratado com um esmero e um cuidado extraordinários. Em última análise, aquilo a que chamo ‘o meu trabalho’ consiste, no fundo, em dar a conhecer da melhor forma possível as grandes obras da literatura grega. Estou ao serviço dessa literatura que considero cada vez mais bela e relevante. Sinceramente, não vejo que seja ‘eu’ a ser editado pela Queztal, mas sim Homero e a Bíblia.