uas horas e meia esteve Rui Rio reunido com António Costa. A nova liderança do PSD pretende encontrar um entendimento com o PS para fazer “as reformas estruturais”. Essa inflexão do principal partido da direita, embora contrarie as sondagens que dizem que a esmagadora maioria dos eleitores do PS quer um governo aliado aos partidos mais à esquerda, e que semelhante número de eleitores do partido de Rio preferem manter uma coligação com o CDS, está na direção da lei da gravidade costumeira da política portuguesa. Durante cerca de 40 anos, PS e PSD alternaram no poder fazendo políticas muito semelhantes nas suas escolhas estratégicas e repartindo os lugares, benesses do aparelho de Estado e cargos em empresas públicas.
A crise financeira e económica de 2008 e a intervenção da troika vieram quebrar esse equilíbrio. As políticas agressivas do governo Passos Coelho, que entregaram as principais empresas públicas aos privados, debilitaram o incipiente Estado Social português, cortaram os rendimentos dos trabalhadores e dos reformados e deram todo o poder nas leis laborais ao patronato, obrigaram os socialistas a terem em conta a vontade dos seus eleitores de quebrar este ciclo de políticas e empurraram o PCP e o BE para encararem uma solução de tudo menos o governo neoliberal de direita.
O programa da chamada geringonça era uma espécie de cessar-fogo que impedia a continuação da destruição do Estado social e dos direitos de quem trabalha há mais tempo, dos reformados e dos trabalhadores da função pública. A este programa somavam-se algumas medidas avulso do PCP e Bloco, tendo em vista a recuperação, sobretudo, dos rendimentos cortados.
Não se tratava de fazer uma rutura real com as políticas autoritárias decorrentes das imposições da União Europeia e das condições que resultam da aceitação da moeda única (euro). Estes constrangimentos estruturais impedem a renegociação da dívida, a formulação de uma outra política monetária e a criação de uma nova orientação económica que retire Portugal de uma divisão internacional do trabalho que nos coloca como uma espécie de oásis turístico sem produção própria nem aposta em setores tecnologicamente avançados, com mão-de-obra qualificada e bons salários.
Aquilo que o PS podia oferecer era uma nova redistribuição da austeridade, a criação de um clima de uma certa paz social e otimismo, parar a destruição cega do tecido produtivo e inverter timidamente a perda de rendimentos da maior parte da população. Isso foi feito graças à recuperação económica da economia europeia, mas também ao facto de essa pequena alteração ter libertado a procura interna, permitindo que ela contribuísse para o crescimento económico.
É muito claro que a política do anterior governo, e da Europa, não tinha qualquer racionalidade económica. Ela não foi pensada para melhorar a economia: a intervenção da troika serviu para permitir aos bancos franceses e alemães safarem-se da exposição que tinham aos países como Portugal, Grécia, Espanha e Itália, e reforçar o poder da elite financeira ligada ao poder político. No fundo, a ideia de que os pobres do Sul viveram acima das suas possibilidades escondia a realidade de que os bancos dos países do Sul emprestaram muito acima da sua responsabilidade. E que, quando a crise financeira das dívidas soberanas acontece, não se pode apenas penalizar os devedores, mas têm de ser redistribuídos os custos da irresponsabilidade. Quem empresta cobra juros que são diferentes conforme o risco e faz um negócio, não pode ter permanentemente esse risco garantido pelos contribuintes porque, se assim fosse, não devia sequer haver diferença de juros, dado que nem sequer há risco.
O governo de António Costa conseguiu de uma forma hábil recuperar a confiança dos agentes económicos e das populações, adiando as questões de fundo até melhores núpcias – esperando que haja, depois das eleições na Alemanha, e perante a ascensão do populismo de direita em muitos dos países da Europa, uma inflexão de parte das políticas europeias que permita redistribuir da melhor forma os rendimentos existentes e arranjar uma forma qualquer de renegociação de uma dívida impagável e da necessária mutualização da dívida europeia.
Todas as políticas feitas pelo PS não alteraram a redistribuição do poder em Portugal. É duvidoso que a classe política que saltita da Comissão Europeia para a Goldman Sachs democratize a União Europeia: o capital financeiro continua a dominar, até de uma forma crescente, as economias, as políticas e o poder.
Contribui fortemente para a manutenção desta situação a inexistência de forças políticas em todos os países que combatam esse domínio do capital financeiro e especulativo.
Aliás, o dado mais preocupante da sociedade portuguesa é a incapacidade de constituição de um polo que se bata contra esse domínio total e estrangulador de qualquer política emancipatória.
O PCP e o Bloco têm-se mostrado incapazes de fazer política fora do parlamento e de dinamizar uma frente política e social que permitisse colocar na ordem do dia uma rutura real com as políticas de austeridade, mas sobretudo a criação de uma correlação de forças que forçasse o governo a atuar em áreas nucleares dos direitos de cidadania: legislação do trabalho que combata a precariedade e proteja quem produz; revitalização da educação pública e do Serviço Nacional de Saúde; e atuação séria a nível da política de habitação para impedir a especulação imobiliária que corre com as pessoas das suas casas.
O Bloco está mais preocupado em fingir que faz e em apresentar moções sobre a Síria, Venezuela e quejandos, aproveitando campanhas da comunicação social, para “entalar” o PCP do que em fazer qualquer coisa de esquerda. E o PCP tem-se mostrado totalmente incapaz de reinventar um movimento sindical e operário que dê poder às pessoas e chegue à maioria delas, que hoje não têm emprego certo nem direitos. Faz um sindicalismo que não ambiciona ganhar, nem consegue conquistar espaço político e social. De um lado, o oportunismo; do outro, a incapacidade. O problema dos partidos mais à esquerda não está em terem feito o acordo com o PS, é não verem mais nada para além disso. Serem impotentes para fazer política que mobilize e dê poder às pessoas. Estão demasiado domesticados no quadro da política institucional e da mediação dos órgãos de comunicação social para irem diretamente à gente.
Ora, sem essa capacidade radical e subversora dos limites do possível, embora as sondagens deem que a maioria dos portugueses querem um governo de esquerda, é muito provável que as duas horas e meia de reunião entre Rui Rio e António Costa se multipliquem e que um dia tenhamos um governo de bloco central, para acabar o que a troika e Passos não fizeram, sem que a esquerda tenha força para se opor. Nessa altura, os trabalhos de “voluntariado”, como o que se pede a 300 jovens que trabalham de borla e levam o seu próprio material para fazerem tarefas que antigamente eram pagas no Festival da Eurovisão, vão tornar-se a norma geral. Antigamente chamava-se escravatura, hoje deve ter um nome muito mais hipster.