Género: legislado e politicamente correcto


A democracia é virtuosa mas nem sempre amiga do pudor legislativo. Tivesse o decálogo sido encomendado a uma assembleia representativa e não teríamos 10 mandamentos, seriam pelo menos 1001 e muito mais difíceis de cumprir


A fé na lei como factor de transformação da realidade remonta ao iluminismo e, pelo menos desde 1789, é permanentemente desmentida pelo triunfo da realidade sobre o texto legislado. Mas como continua a ser mais barato legislar do que mudar a realidade, a legislação vai engordando, e a realidade ficando igual.

Quero aqui dar pública notícia de mais uma lei, a quarta de 2018, e que se anuncia como sendo o “regime jurídico da avaliação de impacto de género de actos normativos”. Na iii República, as leis não têm por costume ter preâmbulo, pelo que fomos poupados à exposição de motivos que acompanhou o projecto de lei n.o 512/xiii e onde se propunha o cumprimento do dever de “transversalização da perspectiva da igualdade de género (mainstream-ing)”. Cumprindo o dever, o artigo 4.o da lei, sob a epígrafe “linguagem não discriminatória”, determina: “A avaliação de impacto de género deve igualmente analisar a utilização de linguagem não discriminatória na redação de normas através da neutralização ou minimização da especificação do género, do emprego de formas inclusivas ou neutras, designadamente por via do recurso a genéricos verdadeiros ou à utilização de pronomes invariáveis.” Fora da regulamentação da produção de medicamentos, cruzada com o direito da propriedade intelectual, não sei o que sejam “genéricos verdadeiros”, mas proponho uma primeira revisão desta lei, passando a referir o “impacte” e não o impacto, desconfiado que estou quanto à maior neutralidade do primeiro. Limitações da língua portuguesa, ilegal por vetustez, ao não consagrar, como faz a língua alemã, um género neutro que tantas alegrias daria ao luso legislador. O mal é comum a outras línguas românicas e conhece dramas maiores do que os lusitanos. Na língua italiana, as flexões em género feminino de certas palavras ou são neologismos mal acolhidos ou têm uma carga pejorativa (avvocato serve para todos, mas avvocata ou avvocatessa é recusado por algumas; já pilota e autista são politicamente correctos ante litera…).

A bondade das avaliações de impacte legislativo, ex ante e ex post, foi pregada desde os anos 80 pela OCDE e divulgada em Bruxelas pelos negociadores britânicos como forma de enterrar as propostas da Comissão Europeia non gratae. Em Portugal, as avaliações de impacte legislativo dignas desse nome são poucas, o que recomenda que sejam agrupadas em torno do mesmo acto legislativo e que se evite a proliferação de avaliações a partir de perspectivas e exercícios diversos. Vale aqui o mesmo argumento de economia de meios e de eficácia que recomenda, na esfera pública, o reforço dos poderes do provedor de Justiça e o combate à multiplicação de provedorzinhos.

A lei n.o 4/2018 promete ocupar-se do género de forma neutra mas rapidamente serevela limitada aos “homens e mulheres”, o que permite desconfiar que se contém nos limites ultrapassados do masculino e do feminino. Aguardo com expectativa uma pronúncia dos que não se revêm nesta limitação do género por via legislativa. Com sorte, a lei n.o 4/2018 será a primeira a ser objecto de uma “avaliação de impacto de género dos actos normativos” ex post.

A fixação de uma regra sobre produção de actos normativos, como faz o artigo 2.o da lei nº 4/2018, sem que a Constituição lhe confira valor reforçado, destina-se, no caso dos actos legislativos, a ser violada por todos os actos legislativos supervenientes.

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990


Género: legislado e politicamente correcto


A democracia é virtuosa mas nem sempre amiga do pudor legislativo. Tivesse o decálogo sido encomendado a uma assembleia representativa e não teríamos 10 mandamentos, seriam pelo menos 1001 e muito mais difíceis de cumprir


A fé na lei como factor de transformação da realidade remonta ao iluminismo e, pelo menos desde 1789, é permanentemente desmentida pelo triunfo da realidade sobre o texto legislado. Mas como continua a ser mais barato legislar do que mudar a realidade, a legislação vai engordando, e a realidade ficando igual.

Quero aqui dar pública notícia de mais uma lei, a quarta de 2018, e que se anuncia como sendo o “regime jurídico da avaliação de impacto de género de actos normativos”. Na iii República, as leis não têm por costume ter preâmbulo, pelo que fomos poupados à exposição de motivos que acompanhou o projecto de lei n.o 512/xiii e onde se propunha o cumprimento do dever de “transversalização da perspectiva da igualdade de género (mainstream-ing)”. Cumprindo o dever, o artigo 4.o da lei, sob a epígrafe “linguagem não discriminatória”, determina: “A avaliação de impacto de género deve igualmente analisar a utilização de linguagem não discriminatória na redação de normas através da neutralização ou minimização da especificação do género, do emprego de formas inclusivas ou neutras, designadamente por via do recurso a genéricos verdadeiros ou à utilização de pronomes invariáveis.” Fora da regulamentação da produção de medicamentos, cruzada com o direito da propriedade intelectual, não sei o que sejam “genéricos verdadeiros”, mas proponho uma primeira revisão desta lei, passando a referir o “impacte” e não o impacto, desconfiado que estou quanto à maior neutralidade do primeiro. Limitações da língua portuguesa, ilegal por vetustez, ao não consagrar, como faz a língua alemã, um género neutro que tantas alegrias daria ao luso legislador. O mal é comum a outras línguas românicas e conhece dramas maiores do que os lusitanos. Na língua italiana, as flexões em género feminino de certas palavras ou são neologismos mal acolhidos ou têm uma carga pejorativa (avvocato serve para todos, mas avvocata ou avvocatessa é recusado por algumas; já pilota e autista são politicamente correctos ante litera…).

A bondade das avaliações de impacte legislativo, ex ante e ex post, foi pregada desde os anos 80 pela OCDE e divulgada em Bruxelas pelos negociadores britânicos como forma de enterrar as propostas da Comissão Europeia non gratae. Em Portugal, as avaliações de impacte legislativo dignas desse nome são poucas, o que recomenda que sejam agrupadas em torno do mesmo acto legislativo e que se evite a proliferação de avaliações a partir de perspectivas e exercícios diversos. Vale aqui o mesmo argumento de economia de meios e de eficácia que recomenda, na esfera pública, o reforço dos poderes do provedor de Justiça e o combate à multiplicação de provedorzinhos.

A lei n.o 4/2018 promete ocupar-se do género de forma neutra mas rapidamente serevela limitada aos “homens e mulheres”, o que permite desconfiar que se contém nos limites ultrapassados do masculino e do feminino. Aguardo com expectativa uma pronúncia dos que não se revêm nesta limitação do género por via legislativa. Com sorte, a lei n.o 4/2018 será a primeira a ser objecto de uma “avaliação de impacto de género dos actos normativos” ex post.

A fixação de uma regra sobre produção de actos normativos, como faz o artigo 2.o da lei nº 4/2018, sem que a Constituição lhe confira valor reforçado, destina-se, no caso dos actos legislativos, a ser violada por todos os actos legislativos supervenientes.

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990