Por estes dias, em busca de descanso e tranquilidade pelo interior português, confronto-me com a brutalidade dantesca da devastação dos incêndios de outubro passado. Serras e vales, a bordejar o asfalto, tudo negro. Imaginar a aflição, o desnorte, o desespero e a impotência da tragédia é absolutamente aterrador. A vox populi é consensual: foi tudo demasiado imediato e forte para alterar, combater ou resistir. A natureza venceu, como se de um sismo propagado pelo vento se tratasse. Foi aqui mesmo, bem perto de todos nós.
Proliferam desde então os cenários de desistência. Muitos com razão objetiva. Mas nem todos certeiros. Não parece que esteja tudo abandonado e perdido. Ainda que seja uma parcela de país envelhecido, há, ao invés do que muitas vezes se difunde, juventude, com esperança e vontade, com competências e capacidades de adaptação. A juventude que não se fez aos quilómetros de boas estradas que o dinheiro europeu e a omnipresente obsessão pela via rodoviária permitiram para sair para o litoral do poder e das oportunidades. Uma juventude que tem projetos e luta contra a corrente.
Como também há cada vez mais pessoas da minha geração e das cidades do litoral a migrarem para “dentro” do país, mudando as suas famílias e as suas vidas profissionais e empresariais, à busca de outra qualidade de vida e de outra forma de encarar o seu caminho. Muitos deles interessaram-se e recuperaram as suas heranças de família e daí fizeram o seu ponto de partida. Outros começaram por um terreno baldio, uma empresa falida, uma ruína envolvida por uma oportunidade, um convite inesperado de trabalho, uma parceria fora da caixa, uma carreira pública diferenciada. E têm-se feito ao caminho, silenciosamente, partilhando as suas experiências e a sua nova mentalidade. Resistindo às burocracias e convencendo-se de que é possível mudar, com flexibilidade e maleabilidade. Assumindo que é neste caldo geracional que o interior deve ser recolocado e reinvestido.
Este é um dos grandes desafios de uma nova política de unidade, sem que importe esquerda e direita. Esse seria o melhor catálogo para que os incêndios de 2017 não fossem apenas e só uma desgraça, sem que apenas e só seja necessário despejar dinheiro em cima das necessidades. Por isso, há que reescalonar as prioridades, aquelas que têm efeito reprodutor para o futuro. Sendo uma delas, claramente, a mobilidade de pessoas e mercadorias para além das estradas (fora as que ainda são absolutamente essenciais). E, nessa prioridade, colocar sem qualquer dúvida a ferrovia como plano fundamental de ordenamento do território e de desenvolvimento é manifesto. Há demasiados anos que nos perdemos. Ver a apatia com que o comboio tem sido visto é uma desgraça que todos pagamos, comparando o que temos nos países mais próximos (basta Espanha). Num país desenhado a régua e esquadro, não ter uma verdadeira rede ferroviária – substituída por uma insuficiente linha vertical nuclear entre Braga e Faro – é uma frustração, embrulhada nas promessas dos “planos” e das “orientações” adiados e das execuções a passo de caracol. Não é de alta velocidade que se trata e de investimentos faraónicos de rentabilidade duvidosa.
Trata-se de construir e aproveitar um meio de transporte com vantagens incomparáveis, numa aposta entre orçamento público e investimento privado. Assim, quando António Costa pede que o TGV e o novo aeroporto se afastem do debate político-partidário, seria uma lástima que essa exclusão arrastasse o que é tão urgente fazer nas linhas ferroviárias. Quem convencer a Europa desta importância terá sempre a minha admiração. Pois ajudará muito e decisivamente a converter o negro em esperança.
Professor de Direito da Universidade de Coimbra. Jurisconsulto, Escreve à quinta-feira