Para a Síria e para o Iraque esteve em causa a sua sobrevivência enquanto Estados independentes, desenhados a regra e compasso no desfazer do Império Otomano, no final da i Guerra Mundial. A Turquia, eterna candidata a potência regional, viu na luta contra o califado o perigo da mobilização dos curdos turcos, sírios e iraquianos, armados em grau suficiente para proclamarem a independência do Curdistão. O Irão quis proteger os ganhos no Líbano e na Faixa de Gaza, manter a influência em Damasco e garantir que a guerra ao Estado Islâmico (EI) também era feita por xiitas. A Rússia quis combater a possibilidade de o califado exportar candidatos a califas, primeiro para o Cáucaso e depois para o interior das fronteiras russas, acentuar a dependência do regime de Assad enquanto Estado-cliente e testar as capacidades das suas forças armadas depois de um esforço de reorganização e modernização, esforço tornado imperativo depois das insuficiências reveladas na campanha da Geórgia. Os EUA procuraram manter–se longe da guerra civil síria e fizeram o combate ao EI, primeiro, a partir do governo iraquiano, à contrecoeur, dada a influência de Teerão em Bagdad, e depois com ajuda dos curdos.
Quase desaparecido o califado e, com ele, a força do EI na região, o cenário de guerra civil evoluiu para um confronto entre os protegidos dos EUA (curdos) e os protegidos da aliança forjada entre Rússia, Turquia e Irão (o regime de Assad). Trump colocou forças militares regulares na Síria, não se contentando com o modelo Obama de forças especiais e “conselheiros” militares no apoio às forças curdas. Esta semana, as forças americanas em Manbij bombardearam posições do exército de Assad, que procurava ganhar terreno depois da invasão turca em Afrin. Teremos de voltar aos conflitos da Guerra Fria para encontrar um confronto directo entre forças patrocinadas pelos EUA e pela Rússia (esqueçamos os conflitos da Geórgia e na Ucrânia, que não são comparáveis por ocorrerem nas fronteiras da Federação Russa).
Muita coisa mudou no relacionamento entre a Turquia e os EUA. Com o fim da Guerra Fria, Ancara deixou de ter uma fronteira externa com o inimigo, a Rússia. E, por consequência, os EUA deixaram de ter tantas razões para apoiar a hierarquia militar turca como máximo poder de facto. Putin foi suficientemente hábil na construção de uma aliança com Erdogan baseada no acesso à energia barata (e à sua passagem por território turco), na luta contra o extremismo islâmico nas ex-repúblicas soviéticas do Cáucaso e no apoio à ambição turca de se assumir como potência regional e líder do mundo islâmico. A guerra civil síria permitiu consolidar esta aliança que resistiu a tudo, até ao derrube de um avião russo pelos turcos. Esta é uma aliança entre saudosistas dos impérios desaparecidos, o otomano e o soviético.
A subtileza de Teerão e o calculismo de Moscovo emprestam um elevado grau de racionalidade ao conflito. Já Erdogan se revela menos previsível, reagindo desproporcionadamente às ameaças ao seu poder: a perda do apoio dos EUA, os curdos, os democratas turcos, os herdeiros do kemalismo, quer militares quer civis (temporariamente derrotados, mas não desaparecidos).
Esta guerra regional tem algum potencial para subir de divisão. E poderá ser uma guerra não declarada, pois que EUA e Turquia são membros da NATO.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990