Para termos menos medo de algo que nos assusta tanto, como levar uma vacina ou conhecer os sogros, fazemos aquele exercício comum de respirar fundo ou falar sobre isso com os amigos, e sabemos que funciona. Sempre funcionou falar sobre as coisas. Em miúdos, bastava confessarmos aos nossos pais que tínhamos praticamente a certeza que havia um mostro debaixo da cama e eles explicavam logo como isso era impossível porque a casa tinha alarme e ninguém poderia ter entrado sem ser notado (nem mesmo os monstros). Já os irmãos mais velhos, que não foram feitos para descansar ninguém, confirmavam a existência do monstro mas sentiam compaixão ao ponto de dizerem que tinha uma peruca loira e uns óculos estúpidos e que não metia muito medo.
Falar sobre as coisas assustadoras sempre ajudou e com o cancro acontece exatamente a mesma coisa.
Temos de esperar meses mas, finalmente, no dia 4 de fevereiro, os média dizem cancro e não doença prolongada, e as pessoas partilham histórias reais, comuns, desafiando a que outros se preocupem com a sua saúde e mostrando que nada de mais precioso existe. É um dia em que se fala de números e estatísticas, mas sobretudo de esperança, de inovação e de pessoas otimistas que nos inspiram a sermos felizes porque, bolas, o cancro dá sempre aquela bofetada básica de luva branca que acorda qualquer mongo para a vida.
Claro que este dia teria de ser vivido de forma especial. Escolhi estar em Baião, a convite da câmara, para partilhar a minha história. Não só era a minha primeira vez naquela terra tão bonita como também nunca tinha sido promovida uma iniciativa do género. Estávamos todos assustados porque, quando assim é, nunca sabemos a reação das pessoas, mas o pior que poderia acontecer-nos era não aparecer ninguém – valia a pena tentar. Não só apareceram muitas pessoas como (e só foi possível graças à Susana) elas estavam disponíveis para brincar, partilhar, rir, e foi exatamente o que decidimos fazer: conceder-nos uma tarde feliz. A Susana, sobrevivente do cancro e com uma alegria que acorda qualquer um do coma, de microfone na mão e gargalhada alta, perguntava aos sobreviventes da plateia o que tiravam de positivo da experiência com o cancro. E todos nós teríamos de dizer alguma coisa boa que tivéssemos vivido e aprendido. O nosso humor não foi aquele folclore do “Uuuu! Que fixe que foi!”, como se o humor fosse uma máscara, uma forma de omitirmos o que sentimos, num falso histerismo que não me cativa. Ali, o humor foi uma escolha consciente, carregado de amor e de emoções, permitindo que continuássemos vulneráveis.
Lembro-me de uma coisa interessante que alguém disse: “Estamos a rir, mas devemos ter respeito pela doença.” Percebo a intenção desta frase, mas sinto-a como se fosse quase um pedido de desculpa aos presentes para que “não nos levem a mal de tudo o que for dito”. Não concordo. Não temos de pedir licença e muito menos desculpa, sobretudo porque temos de ter respeito, sim, mas por nós mesmos e pelos outros. Não pela doença que veio para ver me se me estraga o dia. E se esse respeito significar dignificarmos a nossa vida e a nossa história com humor? Que assim seja. Não respeito nem idolatro uma doença, pelo contrário, diminuo-a relativizando-a e brincando com as minhas fragilidades, aumentando assim o meu amor-próprio.
É o que escolho para este e para todos os dias. Foi o que escolhemos, juntos, conhecidos e desconhecidos no domingo lindo e frio em Baião.
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