Quase uma parábola


Devido a intervenções processuais algo temerárias mas, por fim, inconsequentes, o legislador italiano decidiu reformar a organização das procuradorias


Ao contrário do que dizem alguns comentadores mal informados, o regime processual penal português não é único na Europa.

Sistemas muito idênticos existem, pelo menos, na Itália, Alemanha e Holanda.

Também não é verdade que o modelo de Ministério Público (MP) português deva ser considerado dos menos hierarquizados.

Em Itália, por exemplo, nem sequer há um cargo de procurador-geral da República, com os poderes de direção e de intervenção processual do português.

No estatuto do MP português há várias normas que permitem às hierarquias superiores e diretas dos titulares dos processos proceder à sua distribuição, dar a estes ordens e orientações sobre a forma como hão de conduzi-los e, se necessário, avocá-los.

Estes poderes devem ser exercidos, fundamentadamente, em função de um conjunto de fatores que vão desde a complexidade do processo até à sua repercussão pública.

Na Itália, durante muitos anos foi-se firmando uma cultura de autonomia funcional muito própria entre os magistrados que conduziam as investigações enquanto, simultaneamente, se caminhou no sentido de criar equipas conjuntas de magistrados – as célebres pool – destinadas a investigar e acompanhar em julgamento os processos mais complexos e politicamente mais sensíveis.

Na verdade, nesse país – onde, como dissemos, não há uma organização vertical nacional do MP -, os magistrados guardam, do facto de se poderem mover ciclicamente do MP para a judicatura e desta para o MP, um sentido de independência funcional único entre os seus pares europeus. 

Não havia, pois, nesse país um conjunto de normas estatutárias do MP que permitisse uma intervenção hierárquica processual tão efetiva como a que existe entre nós.

Os magistrados italianos da minha geração sentiam-se muito orgulhosos desse seu modelo, que permitiu, de facto, investigar e levar a julgamento casos que ficaram na história europeia: refiro-me a processos contra poderosas redes mafiosas e contra formas de corrupção e criminalidade económica e financeira que punham em causa a própria sobrevivência do Estado. 

Alguns deles pagaram tal arrojo com a vida. 

Em anos mais recentes, devido, contudo, a algumas iniciativas processuais algo temerárias mas, por fim, inconsequentes – mesmo que formalmente legais -, o legislador italiano decidiu reformar a organização das procuradorias.

Atribuiu a titularidade originária das investigações exclusivamente aos procuradores coordenadores e reservou-lhes – mesmo quando delegam tal competência – o poder único de promoverem medidas limitadoras da liberdade dos arguidos ou de requererem buscas e apreensão de bens.

Para meu espanto, muitos daqueles magistrados que conheci, então tão ciosos do seu modelo, são agora defensores destas alterações, que consideram totalmente justificadas. 

Se devidamente assumido, o nosso sistema não necessitaria, como expus, de tal tipo de medidas.

Importaria, contudo, que se estudasse seriamente a melhor forma de as competências estatutárias das hierarquias serem de facto cumpridas, de molde a que, pelo menos nos casos mais relevantes, a sua ponderação e experiência se exprimissem realmente nos processos, evitando ainda sobre-expor, desse modo, os magistrados de escalão inferior.

Como dizia um antigo e muito prestigiado inspetor do MP, “os procuradores não devem ser delegados de luxo”. Queria com isto significar que deviam meter as mãos na massa, ou seja, nos processos.

Porque próximos de uma revisão do estatuto, conviria que, nesta matéria, emanassem sobretudo dos magistrados a reflexão e as soluções imprescindíveis à maior eficiência e credibilidade da justiça. 

 

Escreve à terça-feira


Quase uma parábola


Devido a intervenções processuais algo temerárias mas, por fim, inconsequentes, o legislador italiano decidiu reformar a organização das procuradorias


Ao contrário do que dizem alguns comentadores mal informados, o regime processual penal português não é único na Europa.

Sistemas muito idênticos existem, pelo menos, na Itália, Alemanha e Holanda.

Também não é verdade que o modelo de Ministério Público (MP) português deva ser considerado dos menos hierarquizados.

Em Itália, por exemplo, nem sequer há um cargo de procurador-geral da República, com os poderes de direção e de intervenção processual do português.

No estatuto do MP português há várias normas que permitem às hierarquias superiores e diretas dos titulares dos processos proceder à sua distribuição, dar a estes ordens e orientações sobre a forma como hão de conduzi-los e, se necessário, avocá-los.

Estes poderes devem ser exercidos, fundamentadamente, em função de um conjunto de fatores que vão desde a complexidade do processo até à sua repercussão pública.

Na Itália, durante muitos anos foi-se firmando uma cultura de autonomia funcional muito própria entre os magistrados que conduziam as investigações enquanto, simultaneamente, se caminhou no sentido de criar equipas conjuntas de magistrados – as célebres pool – destinadas a investigar e acompanhar em julgamento os processos mais complexos e politicamente mais sensíveis.

Na verdade, nesse país – onde, como dissemos, não há uma organização vertical nacional do MP -, os magistrados guardam, do facto de se poderem mover ciclicamente do MP para a judicatura e desta para o MP, um sentido de independência funcional único entre os seus pares europeus. 

Não havia, pois, nesse país um conjunto de normas estatutárias do MP que permitisse uma intervenção hierárquica processual tão efetiva como a que existe entre nós.

Os magistrados italianos da minha geração sentiam-se muito orgulhosos desse seu modelo, que permitiu, de facto, investigar e levar a julgamento casos que ficaram na história europeia: refiro-me a processos contra poderosas redes mafiosas e contra formas de corrupção e criminalidade económica e financeira que punham em causa a própria sobrevivência do Estado. 

Alguns deles pagaram tal arrojo com a vida. 

Em anos mais recentes, devido, contudo, a algumas iniciativas processuais algo temerárias mas, por fim, inconsequentes – mesmo que formalmente legais -, o legislador italiano decidiu reformar a organização das procuradorias.

Atribuiu a titularidade originária das investigações exclusivamente aos procuradores coordenadores e reservou-lhes – mesmo quando delegam tal competência – o poder único de promoverem medidas limitadoras da liberdade dos arguidos ou de requererem buscas e apreensão de bens.

Para meu espanto, muitos daqueles magistrados que conheci, então tão ciosos do seu modelo, são agora defensores destas alterações, que consideram totalmente justificadas. 

Se devidamente assumido, o nosso sistema não necessitaria, como expus, de tal tipo de medidas.

Importaria, contudo, que se estudasse seriamente a melhor forma de as competências estatutárias das hierarquias serem de facto cumpridas, de molde a que, pelo menos nos casos mais relevantes, a sua ponderação e experiência se exprimissem realmente nos processos, evitando ainda sobre-expor, desse modo, os magistrados de escalão inferior.

Como dizia um antigo e muito prestigiado inspetor do MP, “os procuradores não devem ser delegados de luxo”. Queria com isto significar que deviam meter as mãos na massa, ou seja, nos processos.

Porque próximos de uma revisão do estatuto, conviria que, nesta matéria, emanassem sobretudo dos magistrados a reflexão e as soluções imprescindíveis à maior eficiência e credibilidade da justiça. 

 

Escreve à terça-feira