Quando olhamos o panorama das entidades reguladoras portuguesas, numa perspetiva muito própria que é a que resulta da lei-quadro aprovada em 2013, podemos identificar um regulador horizontal, a Autoridade da Concorrência, e um conjunto de reguladores verticais em que se inserem os reguladores financeiros, mais antigos e também vocacionados para áreas a carecer de reponderação, e os que resultaram essencialmente da abertura de “monopólios naturais” e que integram o objetivo público de garantir a existência de mercados concorrenciais e assegurar a segurança ou os direitos dos consumidores.
Porém, em Portugal, fruto de um conjunto de leituras conjunturais, nasceram outras entidades a que se concedeu a designação de “reguladores” mas que, pela natureza do exercício ou pelo universo em que atuam, não o são.
Vital Moreira tem uma consagração feliz que sempre utilizamos para separar o trigo do joio quando, usando os critérios do objetivo e da aplicação da regulação, se fixa em assumir a “justificação em si e por si”. É exatamente esse o ponto de análise – todos entendem a verificação pública de entes reguladores que olhem a energia, as comunicações ou a água como áreas que se justificam, em si e por si, na leitura da regulação económica e na proteção dos consumidores.
Mais recentemente, por decorrência da visão correta da eficiência das redes, afirmou-se a regulação técnica, que se apresenta elemento anterior e posterior às regulações económicas e para os consumidores. Porém, há quem considere que essa regulação técnica pode carecer de entidades administrativas independentes, apreciação que não recolhe a nossa concordância. Olhando as áreas do medicamento, da segurança marítima, da propriedade intelectual, não podemos esclarecer, com rapidez, a necessidade dessa autonomia de regulação. Aliás, na maior parte dos países europeus, ela não se revela carente de outro património que não seja a inserção na administração indireta do Estado, estando mesmo dependente, em muitos, da influência e da ação diária dos governos.
Quando se diz que o Estado regulador se pode verificar pela retirada do governo da atividade reguladora, para entregar essa obrigação pública a entidades independentes, importa conhecer a realidade ocidental e aprofundar o cinismo da consideração. A regulação é cada vez menos independente, por captura eficaz dos entes que a desenvolvem.
Baldwin indica-nos os critérios a que se obrigam as avaliações sobre o mérito dos atos de regular. Processo transparente e justo (1); concessão de poder regulamentar e de competências de supervisão (2); sistema de responsabilização interno e externo (3); especialização do conhecimento técnico (4); e eficiência do sistema (5).
Esta aquilatação teológica é relevante para entendermos o posicionamento de quem entende que o regulador português da aviação civil não se insere nos critérios que foram indicados.
A Autoridade Nacional de Aviação Civil é uma evolução semântica do instituto que, até março de 2015, era comportado pela administração pública indireta. A transição para autoridade administrativa independente nasce unicamente pela subversão em que atuou o governo (2011/2015) no sentido da privatização proparoxítona da companhia aérea de bandeira e dos aeroportos civis. Nenhuma outra razão de fundo, criteriosamente identificada, se apresentava.
Tanto assim foi que o novo regulador se viu dirigido por uma administração composta por personalidades revestidas originalmente de capitis diminutio – dois recrutamentos em entidades reguladas, um nomeado sem os critérios de transparência pública e habilitação para o cargo.
Das quatro dezenas de atribuições estatutárias que a ANAC recebeu como património estatutário, há um conjunto vasto de atividades administrativas de terceira categoria, imperiosamente assumidas pelas repartições menores do Estado, que não exigem sequer uma direção- -geral; há ainda um outro conjunto que se assume nas responsabilidades de representação no espaço internacional e essas podem ser agregadas a entes de diversa natureza e com formulações várias, como se pode constatar olhando a composição da Organização da Aviação Civil Internacional; consagram-se ainda os universos da segurança e da interdependência com os sistemas de defesa, segurança e proteção civil que, como se comprova com os reportes públicos no âmbito da Convenção sobre Aviação Civil Internacional, podem ser assumidos por diversas entidades que, na sua grande maioria, não são reguladores.
Há, porém, duas atribuições que devem ser analisadas porque encaixam nos habituais padrões regulatórios que já referimos: a primeira, a que se afirma no controlo de poder de mercado em matéria de licenciamentos e qualidade de serviço nos setores aeroportuário e de navegação aérea; a segunda, a que se assume na proteção dos consumidores.
Quanto à primeira, olhando o que decorre dos contratos de privatização/concessão das empresas com capitais públicos do setor, poderemos considerar que o regulador se afirmava castrado; quanto à segunda, olhando os resultados das inspeções e a sua eficácia na operação, poderemos considerar que o regulador se considera praticamente inexistente.
Terá havido, então, alguma razão para que se tivesse avançado para esta nova autoridade independente? Duas razões também. A primeira, a que sempre está na cabeça dos abutres das existências públicas – o passar de culpas e a desresponsabilização; a segunda, a da valorização salarial dos recursos humanos que, a não ser assim, se veriam contidos nas regras apertadas de remuneração das restantes administrações. Não desgraduamos esta última consideração, mas ela não pode ser razão para se aplicar a fuga e benefício de umas e a reclusão de outras entidades.
A ANAC tem poder regulamentar, é verdade. Mas ele é determinado, quase em exclusivo, pelas implicações internacionais; a ANAC tem ainda componentes reverentes de competências técnicas, mas elas campeiam em concubinato com os regulados. Tem a ANAC um sistema eficaz de responsabilização? Não tem! Tem a ANAC uma preocupação com a eficiência do sistema? Não tem! Tem a ANAC um processo interno justo, acessível e transparente? Não tem!
A ANAC, entidade de intervenção única no universo da aviação civil, tem, ao nível do procedimento interno, um dos mais anquilosados sistemas de organização. Os licenciamentos simples (aeronaves ou aeródromos, por exemplo) verificam em Portugal um tempo que é três vezes mais do que em Espanha. Mais: em Espanha, o licenciamento pode obter-se, por decorrência da virtualização do processo e da gestão individual do cliente, em menos de 24 horas quando se liga a certificação de pessoal ou de aeronave.
O estatuto da ANAC tem ainda, e porque foi elaborado por alguém muito perverso e que assumiu a governação setorial durante quatro anos (2011/2014), duas circunstâncias muito especiais. Olhando para outros estatutos de entidades reguladoras, a má gestão e a inobservância do interesse público podem conceder a cessação do mandato dos reguladores. Neste ente da aviação, isso não existe, porque importava garantir, na altura, que as privatizações e o processo de verificação do seu cumprimento seriam assumidos de forma míope. Ao mesmo tempo, a ANAC não se reveste de um sistema de responsabilização e de transparência. A par da ANACOM (estatutos que saíram do mesmo gabinete governamental e no mesmo tempo), as funções de controlo do exercício, através de conselho-geral e de obrigações de gestão públicas, não estão consagradas.
Importa, pois, regressar a uma leitura nova da formatação da ANAC, olhar para as suas atribuições de ente “enternecedor” que se situa entre a repartição pública da década de 1960 e as obrigações de mercado, e consagrá-la com uma nova etapa de modernidade, sindicância, avaliação e prestação de contas exigente.
Deputado do PS