“O jornalismo é o primeiro esboço da História”, dizia Phil Graham, o homem que herdou o “Washington Post” das mãos do sogro, Eugene Meyer, que na década de 1930 o comprou como um jornal local em bancarrota. Frase mais do que citada e que não fica, não poderia ficar, de fora de “The Post”, agora pela voz de Meryl Streep, como Katherine Graham. Mulher num mundo não apenas dominado, reservado a homens, dona de casa que se fez dona de um jornal depois do suicídio do marido (Phil). Mas mulher que, numa noite de 1971, tomou, numa chamada telefónica, uma decisão histórica para o seu jornal, para o jornalismo e para a democracia americana.
Nesses minutos, minutos transformados em horas pela angústia com que Steven Spielberg os carregou neste seu último filme que chega hoje às salas a revisitar a revelação dos Papéis do Pentágono (em 1971, primeiro grande escândalo para a administração Nixon e as que a antecederam, desde o início da guerra do Vietname), o jornalismo foi bem mais do que “primeiro esboço”. Foi História, e História protagonizada por um diretor, Ben Bradlee (Tom Hanks) e um grupo de jornalistas, mas sobretudo por ela – Kay.
Sem surpresa nomeada para mais um Óscar, Meryl Streep é – com Kay Graham, a primeira mulher à frente de um jornal nacional na História dos Estados Unidos – a estrela definitiva deste filme, que na verdade partiu da vontade de Liz Hannah de escrever um filme sobre ela. “Li o ‘Personal History’, livro de memórias de Graham, e quis que a sua voz fosse ouvida. Só não sabia como, porque não queria escrever um biopic”, explica a produtora de Nova Iorque que, aos 32 anos, se estreia aqui como argumentista nas notas de produção do filme. “Só quando li as memórias de Ben Bradlee e me deparei com esta decisão monumental que foi a da publicação dos Papéis do Pentágono que percebi o que fazer. Decidi contar a história dos dois no contexto da emancipação de Graham, que determinou o futuro do ‘Post’. Havia ali tanto drama, tanto risco, que a narrativa fluiu, simplesmente.”
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Todo o filme é carregado por esse risco, esse drama em crescendo que há de culminar na decisão. Ainda antes de Spielberg, foi Meryl Streep a ler essa primeira versão do argumento assinado por Hannah, a que depois se juntou Josh Singer, cuja habilidade de retratar detalhada (e visceralmente) a rotina jornalística é bem conhecida, sobretudo depois de “Spotlight”, de Tom McCarthy, que escreveu para um Óscar de Melhor Argumento Original, há dois anos.
Tem dito Spielberg que está aí um dos grandes segredos deste seu mais recente filme, para o qual partiu de impulso, numa decisão que não precisou de mais do que um dia, entre todos os projetos que tinha em mãos (“Ready Player One” a acabar de ser rodado e a produção de “Jurassic World” e de “Bumblebee”, todos com estreia para 2018). “Decidimos tudo num dia”, recorda nas notas de produção. E, no regresso de Itália a Nova Iorque, o filme foi rodado em 11 semanas, para o qual conseguiu o que diz ter sido o “milagre” de juntar Streep, Hanks e o diretor de fotografiaJanusz Kaminski, que sugeriu filmá-lo em 35mm.
Película tão bem-vinda quanto todos os minutos ao longo dos quais se prolongam as cenas na gráfica, uma verdadeira gráfica da década de 1970, montagem de chapas, as rotativas, o carregamento das carrinhas de distribuição. Uma das cenas mais nostálgicas de todo o filme em que, vamos constatando, problemas o jornalismo sempre teve, e a preferida de Streep também. “Foi emocionante fazer a cena com verdadeiras máquinas de composição, que já não existem. Foi mesmo voltar atrás no tempo, arrepiou-me.”
Com uma reconstituição de um tempo que quem conheceu tem dito perfeita, “The Post” estreia como um filme maior do que o mais recente elevado ao panteão dos filmes sobre o jornalismo, “Spotlight”. Intransponível será sempre “Todos os Homens do Presidente”, o clássico de 1976 com que Alan J. Pakula retratou meticulosamente o trabalho de investigação de Bob Woodward (Robert Redford) e Carl Bernstein (Dustin Hoffman), os jornalistas do “Washington Post” que, logo depois dos Papéis do Panamá, expuseram o maior escândalo político da história da América, que fez cair Richard Nixon.
E Spielberg sabe disso. Tanto que, apesar de centrado em Graham, “The Post” vem como elogio ao filme de Pakula, ao mesmo tempo que cumpre a função de prequela – que na era de Trump agradecemos. Entre a fachada do complexo de Watergate e um reenactment de uma das suas cenas mais icónicas daquele filme, “The Post” termina onde começa “Os Homens do Presidente”.