Cláusula obrigatória


A dignificação do “interior” do país deve ser, depois da oportunidade criada pela desgraça brutal dos incêndios, uma trave essencial dos “pactos de regime”. 


Quando as mudanças chegam às lideranças dos partidos alternativos do poder, inevitavelmente ouvimos falar dos “pactos de regime”. Na campanha recente dirigida aos militantes do PSD também o tema não ficou esquecido, ainda que sem grande substância. Foi pena. Nestes próximos tempos é previsível que haja tempo e necessidade de voltar ao(s) tema(s), tanto mais que o sentimento coletivo solicita cada vez mais esses entendimentos ao poder político. Há desgaste sobre a imprevisibilidade e a fugacidade. E esse sentimento converteu-se em “politicamente correto”, desde logo pela tutela comunicacional do Presidente Marcelo. Mesmo que as táticas políticas possam sobrevir à clara necessidade do imperativo.

Esses “pactos” ficaram, as mais das vezes, pelo caminho por força dos programas partidários de governo e, em acrescento, por razões das circunstâncias e das personalidades. A justiça é um dos casos mais problemáticos, uma vez que não se pode mexer tanto e em tão pouco tempo em leis fundamentais e na organização judiciária. Não se pede que se uniformizem sem quaisquer diferenças as políticas transversais. Porém, é urgente que subsistam quadros jurídicos e práticas executivas que sejam consolidados por um assinalável período de tempo. Chamar–se-á convergência na estratégia. Exige-se hoje a tutela das expetativas de que as soluções encontradas em determinado momento não se destruam no momento seguinte, pois espera-se que as soluções resultem de um esforço apurado para se encontrar as que, pela sua razoabilidade e valia, sejam para ficar. A confiança e a acreditação são hoje valores essenciais na relação das pessoas e das empresas com os decisores políticos e legislativos. Sem elas, falece o mais básico da delegação eleitoral e desaparece o núcleo essencial da vida em comunidade para um mundo demasiado célere: a estabilidade e a segurança. Por exemplo, se as regras fiscais estão sempre em cheque ano após ano, qual se espera que seja a reação das famílias e dos investidores? Sem estabilidade e segurança, creio que não há remédio para muitas das crises endémicas do país. Se os decisores políticos não se fundem num “contrato de regime” sobre a “gestão de topo” do país, estão a pôr-se a jeito para a desconfiança e a suspeita. Esse “contrato” é hoje uma questão da própria democracia.

Mas a democracia tem surpresas para os políticos e coloca à frente dos olhos o inevitável. Os incêndios do verão e outono de 2017 vieram colocar a nu as desigualdades entre litoral e interior – num sentido mais amplo, entre Lisboa, Porto e algumas cidades médias e o resto do território. A interioridade, a desertificação e a discriminação entraram pelas casas dos portugueses da forma mais brutal. E logo se ouviram as vozes da descentralização, do combate às macrocefalias, da crítica às várias insularidades que mirram o território e da reorganização etária das populações. Pois é tempo de elas se transmutarem num projeto nacional, indiferente às crenças partidárias e à propaganda da reflorestação (entre outras). Será tão simples começar pelo óbvio: incentivos no campo da migração interna das famílias (a começar pela máquina do Estado), especialmente visíveis na educação, na habitação e no emprego; programa de fiscalidade adequado; atribuição de competências públicas a centros de decisão regional (não necessariamente autarquias); agilização dos fundos europeus (já a pensar no período ulterior a 2020). É tempo de olhar para as estruturas que se foram integrando e governar sem medos, de fora para dentro de Lisboa. Se isto não é cláusula obrigatória para um “contrato de regime”, não vale então a pena falar disso.

 

Professor de Direito da Universidade de Coimbra. Jurisconsulto

Escreve à quinta-feira


Cláusula obrigatória


A dignificação do "interior" do país deve ser, depois da oportunidade criada pela desgraça brutal dos incêndios, uma trave essencial dos "pactos de regime". 


Quando as mudanças chegam às lideranças dos partidos alternativos do poder, inevitavelmente ouvimos falar dos “pactos de regime”. Na campanha recente dirigida aos militantes do PSD também o tema não ficou esquecido, ainda que sem grande substância. Foi pena. Nestes próximos tempos é previsível que haja tempo e necessidade de voltar ao(s) tema(s), tanto mais que o sentimento coletivo solicita cada vez mais esses entendimentos ao poder político. Há desgaste sobre a imprevisibilidade e a fugacidade. E esse sentimento converteu-se em “politicamente correto”, desde logo pela tutela comunicacional do Presidente Marcelo. Mesmo que as táticas políticas possam sobrevir à clara necessidade do imperativo.

Esses “pactos” ficaram, as mais das vezes, pelo caminho por força dos programas partidários de governo e, em acrescento, por razões das circunstâncias e das personalidades. A justiça é um dos casos mais problemáticos, uma vez que não se pode mexer tanto e em tão pouco tempo em leis fundamentais e na organização judiciária. Não se pede que se uniformizem sem quaisquer diferenças as políticas transversais. Porém, é urgente que subsistam quadros jurídicos e práticas executivas que sejam consolidados por um assinalável período de tempo. Chamar–se-á convergência na estratégia. Exige-se hoje a tutela das expetativas de que as soluções encontradas em determinado momento não se destruam no momento seguinte, pois espera-se que as soluções resultem de um esforço apurado para se encontrar as que, pela sua razoabilidade e valia, sejam para ficar. A confiança e a acreditação são hoje valores essenciais na relação das pessoas e das empresas com os decisores políticos e legislativos. Sem elas, falece o mais básico da delegação eleitoral e desaparece o núcleo essencial da vida em comunidade para um mundo demasiado célere: a estabilidade e a segurança. Por exemplo, se as regras fiscais estão sempre em cheque ano após ano, qual se espera que seja a reação das famílias e dos investidores? Sem estabilidade e segurança, creio que não há remédio para muitas das crises endémicas do país. Se os decisores políticos não se fundem num “contrato de regime” sobre a “gestão de topo” do país, estão a pôr-se a jeito para a desconfiança e a suspeita. Esse “contrato” é hoje uma questão da própria democracia.

Mas a democracia tem surpresas para os políticos e coloca à frente dos olhos o inevitável. Os incêndios do verão e outono de 2017 vieram colocar a nu as desigualdades entre litoral e interior – num sentido mais amplo, entre Lisboa, Porto e algumas cidades médias e o resto do território. A interioridade, a desertificação e a discriminação entraram pelas casas dos portugueses da forma mais brutal. E logo se ouviram as vozes da descentralização, do combate às macrocefalias, da crítica às várias insularidades que mirram o território e da reorganização etária das populações. Pois é tempo de elas se transmutarem num projeto nacional, indiferente às crenças partidárias e à propaganda da reflorestação (entre outras). Será tão simples começar pelo óbvio: incentivos no campo da migração interna das famílias (a começar pela máquina do Estado), especialmente visíveis na educação, na habitação e no emprego; programa de fiscalidade adequado; atribuição de competências públicas a centros de decisão regional (não necessariamente autarquias); agilização dos fundos europeus (já a pensar no período ulterior a 2020). É tempo de olhar para as estruturas que se foram integrando e governar sem medos, de fora para dentro de Lisboa. Se isto não é cláusula obrigatória para um “contrato de regime”, não vale então a pena falar disso.

 

Professor de Direito da Universidade de Coimbra. Jurisconsulto

Escreve à quinta-feira