Numa pesquisa que indique “regulador da água”, qualquer motor de busca nos leva para a Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR). Ora, nem a ERSAR é um regulador nem o setor da água, como devemos entendê-lo num universo de preocupações e políticas públicas, tem uma entidade que o abarque.
A ERSAR, com a formatação que a fornada de regimes jurídicos de 2014 lhe determinou, é um regulador anacrónico, um ente que só passou do nível da administração indireta do Estado (mesmo mantendo a mesma designação) para o universo da administração independente por casmurrice do titular governativo da água.
A ERSAR destina-se, diz a lei n.o 10/2014, de 6 de março, a promover a regulação e supervisão dos serviços de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos. À primeira vista faria sentido, porque estas atividades, quase sempre promovidas pelos municípios, até se apresentam no mesmo processo fatural. Só que o mundo que vislumbramos não é o que hoje avistamos.
A nível estratégico, a médio e longo prazo, confundir duas realidades que caminham para sentidos divergentes é criar uma dispendiosa ineficiência para o país. As alterações climáticas que, crescentemente, têm gerado, no nosso país, episódios de cheias e de seca extrema em tempo restrito, indicam que a gestão da água deverá ter uma visão própria e uma abordagem inteligente. Internacionalmente, em certas partes do globo, aumentam tensões regionais com crispação diplomática e até paramilitar para o acesso e controlo de recursos hídricos, criando-se o cliché – mas não é menos verdade – de que a água será o petróleo de meados do presente século.
Há um primeiro universo de missões que não deveria estar sujeito a regulação: o dos resíduos urbanos. Esta atividade deveria ser aberta, entregue à atividade privada, destacada das atribuições e competências dos municípios que não fossem só a determinação da autorização de funcionamento dos operadores e das áreas de exploração. Num país moderno, não deveríamos estar a pastejar perante a imutabilidade da recolha de lixos feita por funcionários municipais ou por empresas contratadas pelas autarquias; deveríamos estar a determinar áreas de recolha, preços indicativos e marcadores de desempenho.
Prolongar o atual statu quo de alimentar grupos restritos de empresas gestoras de resíduos com rendas fixas sem os mínimos nos critérios de exigência de serviço público, encarecendo o processo de recolha e tratamento de resíduos, não só não permite uma efetiva defesa ambiental como não permite o florescer da iniciativa privada e o aumento da concorrência. Indo mais longe, a pasmaceira em que este setor se encontra hoje não permite abrir horizontes para os desafios e oportunidades de uma economia circular que transforme resíduos em matéria-prima para a indústria, sobretudo num país que não é abundante em recursos naturais.
A atividade global de gestão de resíduos de qualquer tipo deverá, em futuro que se espera próximo, ser livre, como já é em muitos elementos da cadeia de valor. A regulação e supervisão do universo dos resíduos não faz, por isso, qualquer sentido e as obrigações de organização do mercado deveriam ser parqueadas na Agência do Ambiente.
O segundo universo é o da água. Quando queremos regular unicamente o abastecimento para consumo humano, que tem também prolongamento para atividades económicas de qualquer tipo, porque as redes não se seccionam, o que estamos a fazer é uma política asnática de minifúndio, uma visão paroquial do ciclo global da água.
Em Portugal, ainda entendemos do universo da gestão dos recursos hídricos como que um campo de interesses entre ministérios e serviços. Se falamos de regadio ou de usos para a agricultura, lá estará o respetivo e anquilosado ministério a refazer uma visão vencida da política e dos investimentos. Se falamos do uso dos recursos para salvaguarda ambiental, lá estão as administrações hidrográficas ou as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (dependendo dos ciclos políticos) a implicar no território, em busca de taxas e taxinhas. Quando falamos dos +/- 10% de uso para consumo humano, lá estão as autarquias locais a politizar eleitoralmente o universo da distribuição domiciliária e o tratamento de águas residuais com opções de investimento muitas vezes incorretas, com opções tarifárias insustentáveis a prazo, com perdas de rede absurdas e, principalmente, com a ausência de uma visão por bacia (e da ligação entre estas) que faça frente a situações de grave seca.
A política da água deveria assentar num único ente público, mesmo que as orientações políticas setoriais resultassem da indicação de diversos membros do governo.
Temos para nós, nesta fase em que nos encontramos, que o estudo de custo/benefício de alguns dos projetos de regadio cairiam por terra. Muitos dirão que se trata de alojar recursos europeus para promover investimento. Talvez se questionem os muitos milhões que foram concretizados desde a nossa adesão, que se saiba como estão a ser promovidas as interações dos poderes públicos com as unidades/entidades de gestão, mesmo as do Alqueva, para que se avalie se não estamos perante um enorme processo de ajudas de Estado à atividade agrícola de alguns universos de “intensivo e superintensivo” e se, no espaço de uma geração, não ficará o orçamento nacional com uma responsabilidade, impossível de assegurar, de gestão e manutenção das infraestruturas e equipamentos.
Na ligação do regadio com a produção hidroelétrica e com o abastecimento domiciliário, importaria que se olhasse, de novo e com um âmbito temporal significativo, para os investimentos em barragens, para o armazenamento. E que se avaliasse a gestão das fontes de energia na leitura do papel da água e da capacidade de alavancagem de dinamização socioeconómica da região em questão.
O universo da captação, tratamento e distribuição de água sofreu, nos últimos quatro anos, de uma implicação autárquica que não foi ponderada pelo governo. Consideramos que a reversão da reforma do universo empresarial público da água foi um erro económico (que incentivou a assimetria regional) que, a prazo, deveremos reponderar.
Os sistemas de captação, tratamento e distribuição em alta deveriam ser inseridos num único ente nacional, com a participação acionista repartida pelos municípios em valor do imobilizado que incorporaram, do investimento que suportaram, das expetativas que haviam consagrado em contrato. E o Estado deveria impedir, contrariando a opção seguida na REN, a privatização de mais de 25% do capital da empresa nacional em que as Águas de Portugal haveriam de se transformar.
O processo tarifário, a alocação de recursos, o equilíbrio territorial, a gestão inteligente das redes, a garantia de qualidade no abastecimento só se construirão com uma empresa única, nacional, estratégica.
O que fazer, então, perante a capilaridade da distribuição em baixa? Há dois caminhos que importa seguir. O primeiro, de iniciativa dos municípios, que leva à agregação de sistemas e à valorização da gestão. Importa atentar no voluntarismo e na qualidade da ação política, até na responsabilidade de estar à altura dos tempos, que os autarcas dos municípios do sul do distrito de Vila Real estão a colocar na criação de um novo ente empresarial comum. Mas não podemos deixar de ponderar a concessão de sistemas a privados ou a preferência por processos empresariais intermunicipais onde se garanta a criação de escala e, simultaneamente, uma supervisão entre pares.
Ao contrário do que alguma imprensa e alguns atores políticos querem fazer crer, a operação, por privados, dos sistemas de abastecimento de água não perde em qualidade e ganha em eficiência e em tarifa. Neste caso, gostaria de retirar do lote o processo de Barcelos, um autêntico assalto à mão armada.
Ainda na água, o país deveria contratar com as freguesias e outras entidades que suportam sistemas locais de distribuição a cessação, por contrapartida, da atividade. Importa que os sistemas de captação sejam certificados e integrados.
Por último, uma visão da gestão das redes de recolha e tratamento de águas residuais. Trata-se de um universo onde iremos assumir um novo tempo com a incorporação smart das utilities. Nos dias de hoje assumimos a incorporação das redes de águas residuais com as redes de águas pluviais. Não sabemos mesmo indicar se existe algum concelho onde se indicam, segregadas completamente, as mesmas condutas. Ora, o armazenamento das águas pluviais em processos de uso para muitas das atividades públicas e domésticas vai obrigar a novas políticas e novas opções de investimento. Convivendo paredes-meias com indústrias que inovaram e utilizam a água totalmente reciclada e de origem pluvial, o chamado regulador, nas suas atribuições e competências, revela-se analógico perante esse futuro emergente.
Assumir o universo de negócios da ERSAR com uma visão de interesse imediato é o maior erro que se pode cometer nas políticas públicas. Reinventar o papel do Estado no setor da água é urgente, é mesmo um imperativo. Relevar, de forma criativa, o papel as autarquias, quer na qualidade de prestadores quer na qualidade de gestores do território, é um dever. Poderemos esperar alguma ação que surpreenda o país e por agora? Temos dúvidas.
Deputado do Partido Socialista
Escreve à segunda-feira