Dormindo, não fala, pelo que não pode consentir no beijo dado pelo Príncipe. Beijo recebido sem consentimento expresso, por quem não está em condições de consentir, é uma violência sexual com enquadramento na lei penal, sem salvação no direito fundamental ao “beijo roubado”, tal como reivindicado por Catherine Deneuve. Mas a Bela Adormecida é também vítima de uma rede de tráfico de brancas, foi drogada pela bruxa má, uma drag queen mal resolvida. Razão pela qual a moral hodierna exige a acompanhar a Bela um Príncipe africano, enobrecido na busca da identidade sexual e que não se deixe vitimizar pelos estereótipos dos contos de fadas.
Um conto de fadas do séc. xxi joga com a intertextualidade e os lugares paralelos, convoca personagens de outras jornadas e de outros contos. Chega ao local do beijo um lenhador. É da Falagueira e sofre com a escassez de arvoredo em meio urbano. Fixou-se no personagem desde o primeiro episódio de Twin Peaks. O cabelo, entretanto, caiu. Usa capachinho, mas no resto segue as leis da arte: barba negra, camisa de grossa flanela aos quadrados vermelhos e pretos e machado ao ombro. Costuma ter grande sucesso na Comic Con sempre que lá consegue ir e o chefe da tesouraria onde finge trabalhar não lhe boicota as pontes.
Onde esteja o Lenhador, chega-se o Capuchinho. Este já não é vermelho, lê livros de auto-ajuda, está a tomar hormonas e sente-se muito pouco confortável com a presença do Lenhador. Abandonou a Avó no hospital ainda antes do dia de Natal e tenta mostrar compreensão pelos olhares melados que o Lobo, ataviado de avozinha, lança ao Lenhador.
O Lenhador desdenha o Lobo-avozinha, não porque tenha preconceitos em relação ao amor pelos animais, mas tão-simplesmente porque, depois de muitos milhares de horas de publicidade televisiva em horário nobre, de-senvolveu uma fobia ao pêlo alheio, por qualquer pêlo não facial. Sublimação da própria calvície, mas que coloca o Lobo em maus lençóis. Par contre, o Príncipe é um homem moderno, segue os ditames da moda, também em matéria de pêlo. Cofiando a barba, o Lenhador aproxima-se do Príncipe e, tomado pela libido, põe a mão no joelho que sobra da genuflexão a que o Príncipe osculante se entrega junto da Bela Adormecida.
Foi o que bastou para tirar o Príncipe do seu engano e cair nos braços do Lenhador. Já Capuchinho, que da cena não perdia pitada, aproveitou para tomar o lugar do Príncipe junto da Bela. E ao contrário do que seria a vontade da normal declaratária adormecida, desta vez, a Bela despertou e, estreitando Capuchinho, murmurou: “Eu também…”
Como qualquer conto moral que envolva joelhos, também neste terá de haver um momento de pathos que permita a catarse colectiva e a ancoragem da felicidade prometida. Enquanto o PAN não legisla a proibição da morte dos animais nos contos de fadas, mantenhamos um pouco da tradição narrativa e permitamos ao Lobo um suicídio digno com a ajuda do machado do Lenhador. E não viveram felizes, nem juntos, nem todos, nem para sempre.
Esta história é baseada em factos reais. Todas as cenas descritas resultaram de práticas consentidas entre adultos. Todas as substâncias utilizadas foram objecto de prescrição médica. Os animais empregues beneficiaram de um contrato de trabalho a termo.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990