Variações do Diabo numa nota só: o poder


É hoje clara a abertura de um novo ciclo político em que se ampliam as possibilidades de o PSD ser muleta parlamentar do Partido Socialista no quadro da próxima legislatura


Maquiavel estava certamente longe de antever que, entrados no séc. xxi, o mafarrico seria figura recorrente no discurso político em Portugal.

Em julho de 2016, ainda atordoado pelo início da sessão legislativa em que, tendo ganho as eleições, deixou de ter maioria para governar no parlamento, Pedro Passos Coelho proclamava aos seus deputados: “Gozem bem as férias que em setembro vem aí o diabo.”

Em setembro de 2017, antes da hecatombe autárquica, o mesmo Pedro Passos Coelho assegurava: “Não fomos nós que vendemos a alma ao diabo para governar.”

Em janeiro de 2018, depois da eleição de Rui Rio como líder do PSD, Manuela Ferreira Leite veiculou a nova orientação política: “Da mesma forma que o Bloco de Esquerda e o PCP têm vendido a alma ao diabo, exclusivamente com o objetivo de pôr a direita na rua, acho que ao PSD lhe fica muito bem se vender a alma ao diabo para pôr a esquerda na rua.” É uma variação da tese da suspensão da democracia “para pôr tudo na ordem”, agora na versão “o poder a qualquer custo”.

É longínqua a profecia de acesso às lideranças dos respetivos partidos de António Costa e Rui Rio, irmanados em estratégias de desgaste, em temas da organização do Estado e na geração de um ambiente mediático propício a ondas de mudança do exterior para o interior dos partidos, um pela simpatia, o outro mais pelo chá.

São evidentes as sintonias e as expetativas com Rui Rio, como o seriam com Santana Lopes, este último idolatrado na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa durante os primeiros dois anos da atual solução governativa, num bloco central em que as opções de gestão do “dinheiro dos pobrezinhos” nunca foi problema.

É hoje translúcida a relação quase siamesa do trajeto político seguido, convergente no desgaste, divergente na geração da crise partidária, como é clara a abertura de um novo ciclo político em que se ampliam as possibilidades de muleta parlamentar para o Partido Socialista no quadro da próxima legislatura. A própria expressão de estados de alma de Ferreira Leite evidencia a consagração da entrega ao diabo para aceder ao poder.

O problema do PSD, num quadro de continuidade da atual conjuntura, continuará a ser o legado do perfil e das medidas da governação da sua última passagem pelo executivo, entre 2011 e 2015. O desafio é o de conseguir a adequada demarcação desse tempo de austeridade sem máscaras e com músculo, para construir uma alternativa a esse tempo e ao atual momento de governo e de solução governativa. A vantagem é a da natural configuração do PSD para não olhar a passados quando se trata de conquistar o poder.

Neste quadro de estabilização das lideranças dos partidos da oposição – o CDS com ligações ao anterior governo, o PSD sem essa ligação -, a questão central da legislatura é saber se os apoiantes da solução governativa e o próprio governo se constituem em agentes de desestabilização, pelo que dizem e pelo que fazem. É que mesmo o geralmente convergente Presidente da República contará agora com uma renovada e sintonizada liderança laranja que só precisa de tempo para credibilizar a alternativa e de mais desacertos na atual maioria parlamentar ou na realidade do país.

Definitivamente, este vai ser um tempo de maior monitorização dos comportamentos, das propostas e do discurso político. Porque há um novo protagonista fora do quadro parlamentar, sempre favorável ao governo em contexto de maioria, que terá de confirmar a convergência ou a alternativa ao governo do PS. Porque se aproximam as eleições europeias e as eleições legislativas de 2019, em que quem perdeu quer recuperar o poder perdido nas legislativas e autárquicas. E se o contexto for o do mercado livre da venda de alma ao diabo para aceder ao poder, imagine-se o que aí vem, mesmo com enunciado de intenção de renúncia ao populismo. É que mercado é mesmo com a direita, embora a esquerda esteja amarrada ao leilão dos bilhetes de acesso ao poder.

No meio da licitação, que não se esqueçam das pessoas e dos problemas estruturais que a conjuntura não resolve.

NOTAS FINAIS

Lenha para se queimarem Em junho de 2015, no processo de escolha dos candidatos a deputados, o PS anunciou que todos os candidatos que integrassem as listas teriam de preencher e assinar um documento denominado “Compromisso Ético” onde, além de declararem os seus rendimentos e património, tinham de garantir a ausência de dívidas perante o fisco e a Segurança Social e renunciar a práticas de lobbying. Depois do número político, zero de escrutínio público. Em setembro de 2016, na sequência da polémica das viagens pagas pela Galp a três secretários de Estado para assistirem a jogos de Portugal no Europeu de futebol em França, o governo aprovou um Código de Conduta. Os resultados, sendo de acesso público, não estão online. Afinal, mais ou menos digital, este como o anterior governo escondem a sua agenda diária. Agora foram apresentadas propostas de alegado reforço da transparência dos cargos públicos e de regulação do lobbying. Que os maiores lobistas não fiquem de fora e que o impulso não deixe de ter a possibilidade de escrutínio digital. É o preço da transparência.

Olimpo do risco Aos poucos, pelas tragédias e pela expressão dos riscos, Portugal desperta para a realidade. Um interior envelhecido e abandonado. Riscos que são expressão do tradicional desenrascanço luso na procura de soluções em que o voluntarismo e o genuíno espírito comunitário se sobrepõem à racionalidade. Riscos que continuam a não ser incorporados nas nossas vidas.

 

Escreve à quinta-feira


Variações do Diabo numa nota só: o poder


É hoje clara a abertura de um novo ciclo político em que se ampliam as possibilidades de o PSD ser muleta parlamentar do Partido Socialista no quadro da próxima legislatura


Maquiavel estava certamente longe de antever que, entrados no séc. xxi, o mafarrico seria figura recorrente no discurso político em Portugal.

Em julho de 2016, ainda atordoado pelo início da sessão legislativa em que, tendo ganho as eleições, deixou de ter maioria para governar no parlamento, Pedro Passos Coelho proclamava aos seus deputados: “Gozem bem as férias que em setembro vem aí o diabo.”

Em setembro de 2017, antes da hecatombe autárquica, o mesmo Pedro Passos Coelho assegurava: “Não fomos nós que vendemos a alma ao diabo para governar.”

Em janeiro de 2018, depois da eleição de Rui Rio como líder do PSD, Manuela Ferreira Leite veiculou a nova orientação política: “Da mesma forma que o Bloco de Esquerda e o PCP têm vendido a alma ao diabo, exclusivamente com o objetivo de pôr a direita na rua, acho que ao PSD lhe fica muito bem se vender a alma ao diabo para pôr a esquerda na rua.” É uma variação da tese da suspensão da democracia “para pôr tudo na ordem”, agora na versão “o poder a qualquer custo”.

É longínqua a profecia de acesso às lideranças dos respetivos partidos de António Costa e Rui Rio, irmanados em estratégias de desgaste, em temas da organização do Estado e na geração de um ambiente mediático propício a ondas de mudança do exterior para o interior dos partidos, um pela simpatia, o outro mais pelo chá.

São evidentes as sintonias e as expetativas com Rui Rio, como o seriam com Santana Lopes, este último idolatrado na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa durante os primeiros dois anos da atual solução governativa, num bloco central em que as opções de gestão do “dinheiro dos pobrezinhos” nunca foi problema.

É hoje translúcida a relação quase siamesa do trajeto político seguido, convergente no desgaste, divergente na geração da crise partidária, como é clara a abertura de um novo ciclo político em que se ampliam as possibilidades de muleta parlamentar para o Partido Socialista no quadro da próxima legislatura. A própria expressão de estados de alma de Ferreira Leite evidencia a consagração da entrega ao diabo para aceder ao poder.

O problema do PSD, num quadro de continuidade da atual conjuntura, continuará a ser o legado do perfil e das medidas da governação da sua última passagem pelo executivo, entre 2011 e 2015. O desafio é o de conseguir a adequada demarcação desse tempo de austeridade sem máscaras e com músculo, para construir uma alternativa a esse tempo e ao atual momento de governo e de solução governativa. A vantagem é a da natural configuração do PSD para não olhar a passados quando se trata de conquistar o poder.

Neste quadro de estabilização das lideranças dos partidos da oposição – o CDS com ligações ao anterior governo, o PSD sem essa ligação -, a questão central da legislatura é saber se os apoiantes da solução governativa e o próprio governo se constituem em agentes de desestabilização, pelo que dizem e pelo que fazem. É que mesmo o geralmente convergente Presidente da República contará agora com uma renovada e sintonizada liderança laranja que só precisa de tempo para credibilizar a alternativa e de mais desacertos na atual maioria parlamentar ou na realidade do país.

Definitivamente, este vai ser um tempo de maior monitorização dos comportamentos, das propostas e do discurso político. Porque há um novo protagonista fora do quadro parlamentar, sempre favorável ao governo em contexto de maioria, que terá de confirmar a convergência ou a alternativa ao governo do PS. Porque se aproximam as eleições europeias e as eleições legislativas de 2019, em que quem perdeu quer recuperar o poder perdido nas legislativas e autárquicas. E se o contexto for o do mercado livre da venda de alma ao diabo para aceder ao poder, imagine-se o que aí vem, mesmo com enunciado de intenção de renúncia ao populismo. É que mercado é mesmo com a direita, embora a esquerda esteja amarrada ao leilão dos bilhetes de acesso ao poder.

No meio da licitação, que não se esqueçam das pessoas e dos problemas estruturais que a conjuntura não resolve.

NOTAS FINAIS

Lenha para se queimarem Em junho de 2015, no processo de escolha dos candidatos a deputados, o PS anunciou que todos os candidatos que integrassem as listas teriam de preencher e assinar um documento denominado “Compromisso Ético” onde, além de declararem os seus rendimentos e património, tinham de garantir a ausência de dívidas perante o fisco e a Segurança Social e renunciar a práticas de lobbying. Depois do número político, zero de escrutínio público. Em setembro de 2016, na sequência da polémica das viagens pagas pela Galp a três secretários de Estado para assistirem a jogos de Portugal no Europeu de futebol em França, o governo aprovou um Código de Conduta. Os resultados, sendo de acesso público, não estão online. Afinal, mais ou menos digital, este como o anterior governo escondem a sua agenda diária. Agora foram apresentadas propostas de alegado reforço da transparência dos cargos públicos e de regulação do lobbying. Que os maiores lobistas não fiquem de fora e que o impulso não deixe de ter a possibilidade de escrutínio digital. É o preço da transparência.

Olimpo do risco Aos poucos, pelas tragédias e pela expressão dos riscos, Portugal desperta para a realidade. Um interior envelhecido e abandonado. Riscos que são expressão do tradicional desenrascanço luso na procura de soluções em que o voluntarismo e o genuíno espírito comunitário se sobrepõem à racionalidade. Riscos que continuam a não ser incorporados nas nossas vidas.

 

Escreve à quinta-feira