Vista da saída da autoestrada do Norte para a Segunda Circular, a fábrica parece ter o tamanho gigantesco que a sua porta, na Rua Vasco da Gama, esconde. À entrada da fábrica, que até há um ano pertencia ao grupo internacional Triumph, estão umas poucas dezenas de operárias. A uns metros, uma outra dúzia de operários, sobretudo mulheres, abriga–se do frio cortante numa espécie de tenda improvisada que, diz uma delas, “foi cedida pelo PCP”.
Enquanto lá estamos, pessoas, sindicatos, organizações políticas e sociais vão passando: alguns oferecem comida, como um comerciante da zona; outros, lenha; muitos, apenas companhia e um dedo de conversa. “Estou aqui porque aquilo que lhes aconteceu é uma vergonha e neste país pode acontecer a toda a gente que trabalha, não há respeito nenhum por nós”, diz-me um homem, meio escondido pelo casaco para cortar as rajadas de vento.
Nesta mesma noite vai haver um jantar de solidariedade no RDA, uma associação autonomista e libertária com gente diversa, e uma operária comenta-me: “São muito simpáticos, já estiveram aqui. Tenho imensa pena de não poder ir, mas temos de ficar aqui a guardar a fábrica. Temos de ser nós, as mais velhas, que temos carro. Aqui, durante a noite, é uma zona perigosa.”
Há uma coincidência pelo facto de um dos ativistas que costumam ajudar na cozinha no RDA, Rui Ruivo, ter entrado no filme português, premiado em Cannes em 2017, chamado a “Fábrica de Nada”, do realizador Pedro Pinho, que conta a história de uma empresa industrial abandonada pelos patrões em que estes começam por tentar roubar as máquinas existentes.
Na semana passada, a realidade resolveu imitar a ficção: uns homens tentaram retirar material da fábrica, uma carrinha chegou mesmo a acelerar para cima das operárias. Foi depois disso que as trabalhadoras resolveram ficar a guardar os seus postos de trabalho, de modo a garantir que ninguém tiraria matéria de valor das instalações enquanto lhes estão a dever salários e, no processo de insolvência, as indemnizações devidas por dezenas de anos de entrega total ao trabalho. Uma semana depois, na segunda vez que lá fomos, uns indivíduos tentaram entrar na fábrica para levar mercadoria já feita. Um deles terá, segundo testemunhos, agredido uma trabalhadora, sendo imobilizado pelas dezenas de pessoas presentes e a seguir entregue à polícia.
Durante todo o dia, os operários revezam-se à porta em turnos de quatro horas. A maioria dos outros estão dentro da fábrica, ocupando os seus lugares, como se fizessem um trabalho imaginário. São mais de 400 cumprindo os turnos de trabalho que lhes estão destinados, como se a fábrica estivesse em laboração total. Neste momento, fazem-no ao frio e quase às escuras. Há minutos passou uma carrinha de uma empresa de eletricidade com dois homens que vinham desligar a energia elétrica, dizendo que há três meses que a conta não é paga.
Ao lado desta fábrica equipada com as máquinas e robôs mais modernos parece que estamos no meio de quarteirões bombardeados: à frente está um enorme edifício, todo grafitado e com as dezenas de grandes janelas partidas. Era da Electroliber, uma das maiores distribuidoras portuguesas. “Agora só é usada para filmagens”, diz-me uma operária. “Acho que ainda há pouco tempo lá gravaram um teledisco… não foi do Tony Carreira, foi de um dos filhos, o Mickael”, acrescenta outra, em jeito de conversa.
Dentro da tenda, onde as pessoas se aquecem com um braseiro, fala-se pouco – o frio é muito. Algumas aproveitam para se alimentar. As horas vão ser longas e não há ainda fim à vista. Ficamos à conversa com a trabalhadora mais velha da fábrica, um operário que lá está há mais de 30 anos, uma encarregada que começou aqui, como costureira, há 41 anos, e uma trabalhadora de 28 anos, com sete anos de empresa. São as suas palavras, raramente ouvidas, que contarão a história de um trabalho a que dedicaram grande parte da sua vida.
A operária mais velha de uma fábrica que já teve 1000 trabalhadores Começou a trabalhar com 14 anos. “Vim para aqui isto ainda era tudo em cimento e tinha aberto há poucos meses. Vim para a primeira fábrica ao lado desta”, diz-nos Maria José Gomes. Foi a trabalhadora número 34. “Foi o meu primeiro trabalho. Abri a fábrica e parece que vou ter de a fechar. É pena uma fábrica com esta dimensão acabar.” Lembra-se bem dos seus primeiros dias de trabalho. Era tudo muito duro. Cortadora, profissão que ainda tem, prendia o material para cortar com molas de ferro muito grandes, porque na altura não havia máquinas nem robôs, era tudo feito com muito esforço. O corpo ficava moído do trabalho. “Prendiam-se as coisas e cortava-se na serra.” Mas também foi “estendedora”, na altura não havia máquinas para isso, “e até trouxas cheguei a dobrar quando havia tempo”.
Há cerca de um ano, Maria José teve honras de conversa com o ministro da Economia, Manuel Caldeira Cabral, e os administradores que tinham comprado a fábrica à Triumph. “Os patrões disseram que eu era o orgulho da fábrica porque era a trabalhadora mais velha. Na altura, o ministro disse-me que ainda tinha muitos anos para dar aqui. É pena que, entretanto, não tenha aparecido mais”, comenta, irónica. “Para mim, agiram de má-fé. Acho que a Triumph vendeu a fábrica para que outros a fechassem por eles, não tiveram respeito por nós. A gente conseguiu, ao longo dos anos, colocar esta fábrica a produzir muito, e eles deviam-nos respeito.”
Carla é das operárias mais jovens, tem 28 anos, começou a trabalhar aqui há sete. Não é o seu primeiro trabalho. “Trabalhei numa frutaria, mas resolvi tentar emprego na fábrica porque o ordenado era regular e melhor. Mas, no início, foi tudo muito duro. Se não fosse a ajuda das colegas, teria desistido. Temos de cumprir não só a nossa quota de 100% de trabalho como ultrapassá-la, para receber um pouco melhor.” Uma colega ao lado confirma. A intensidade do trabalho é muito grande. “Chegámos a ter quase cem trabalhadoras de baixa, de tal forma que a Segurança Social chegou a querer um estudo aqui. Mas é simples de perceber: aquilo que nos é pedido não é possível com nenhuma higiene e segurança no trabalho. Temos de nos forçar para o fazer.” Outra trabalhadora concorda. “A herança que levamos da fábrica são as doenças profissionais e as tendinites”, conclui Maria José Gomes, a trabalhadora mais velha.
“O meu colega que está aqui ao lado não me deixa mentir sobre o pesadelo que era abrir aquelas molas de aço para prender os materiais”, acrescenta.
O homem tem 37 anos na fábrica, chama-se Carlos Sousa. “Anteriormente trabalhei noutra fábrica durante 12 anos, já levo 49 anos neste trabalho.” Ganha menos de 900 euros por mês, depois de quase meio século a trabalhar. “Tenho de alimentar a família, venho todos os dias para cá e não recebo ordenado.” O que o indigna mais é que “durante muitos anos fomos considerados as estrelas da Triumph, éramos sempre dos mais produtivos. Quando eu vim para aqui havia muitas fábricas do grupo na Europa, agora deslocalizaram-se todas para a Ásia. Agora afirmam que passámos a ser um fardo para o grupo”, diz.
Lucinda Carvalho, 61 anos, faz 40 de trabalho na fábrica. Lembra-se que ainda tinha 20 anos na altura que começou. Era já costureira. Foi chamada para fazer um teste num dia e no outro entrou como costureira especializada. Já tinha experiência de trabalho na área, mas antes de ir para a Triumph era paga à peça. Na altura, nem tinha Segurança Social. “Mas como casei muito nova e tive um filho, tive de procurar uma situação de trabalho mais estável e que me desse um ordenado fixo. Concorri a este emprego para fazer face às dificuldades da vida”, justifica-se. Esteve oito anos como costureira; depois deram-lhe formação para fazer controlo de qualidade, que é a função que, sempre com responsabilidades maiores, foi desempenhando na fábrica. “Até há dez anos fazia o controlo na peça, desde o começo até ao final; mais tarde fui convidada para fazer o controlo da embalagem final. Em caixa ou em cabide, como eram apresentados os produtos Triumph, eu tinha de verificar se as etiquetas e as descrições das embalagens, desde os tamanhos, modelos e cores, correspondiam ao que lá estava.”
Quando, em setembro de 2017, um ano depois de a Triumph ter vendido a fábrica à TGI-Gramax, deixou de enviar encomendas, Lucinda continuou a fazer esse controlo de qualidade, só que com uma enorme diferença: normalmente havia dezenas de milhares de peças para controlar que saíam todos os dias da linha de montagem; nessa altura, passaram a ser muito poucas as peças para aferir a qualidade. “Nos dias piores da Triumph saíam 12 mil peças, nos melhores 16 mil. Com os novos proprietários, quando acabaram as encomendas da Triumph, não ultrapassávamos as 2 mil peças e havia dias em que não saía nada.”
Em novembro passado, a administração da empresa comunicou aos trabalhadores que iria fazer um processo de reestruturação com despedimento de 150 pessoas. Na sexta-feira, 5 de janeiro, os trabalhadores souberam que a administração tinha iniciado um processo de insolvência. Perante essa situação, decidiram começar uma vigília à porta da fábrica para não deixar sair da empresa material valioso. A vigília manteve-se ao longo de todo o fim de semana, com “turnos” de 30 a 40 pessoas. Os trabalhadores querem que seja nomeado rapidamente um administrador judicial, para ser declarada a insolvência.
“A fábrica teve muito sucesso e trabalho. Chegámos a ser mais de 1000 pessoas. Fazíamos muitos produtos da marca, desde lingerie, sutiãs , fatos de banho, tudo”, diz com orgulho Lucinda.
Na primeiras instalações houve um incêndio, em 1991, e foram trabalhar para Camarate, onde estava instalada a secção de corte da empresa, até que compraram a nova fábrica ao Braz & Braz. “Estas novas instalações eram um luxo: grandes espaços, muitos gabinetes e a maquinaria mais moderna existente no mundo. A primeira vez que vim para aqui fiquei maravilhada.” A fábrica sempre foi muito produtiva, tanto que quando houve o fogo, como não cabia toda a gente em Camarate, a empresa manteve parte das costureiras em casa a pagar–lhes o ordenado, porque sabia que necessitava delas para cumprir o volume de produção. Além de trabalharem aqui, tinham fabriquetas no norte de Portugal, para conseguir produzir mais.
O peso da deslocalização Foi em 2015 que se começaram a ouvir rumores de que a fábrica ia fechar. “Todos os anos há uma reunião do comité internacional da Triumph, para o qual são eleitos representantes dos trabalhadores, e foi lá que as nossas colegas nos disseram que se ouvia que as fábricas na Europa – em Portugal, Hungria e Áustria – iam fechar, porque o trabalho estava a ser deslocalizado para a China, Turquia e Bangladesh.”
Em 2016, as coisas concretizaram-se. “Afirmaram que tínhamos tido uns investidores que iam comprar a fábrica. Eu, na altura, pensei: isto é como um copo que passa de uma mão para a outra. Não perdíamos, aparentemente, regalias, antiguidade, os ordenados ou as categorias profissionais. Só mudávamos de patrão.”
A situação manteve-se durante um ano, enquanto a Triumph manteve as encomendas. Só que as novas encomendas de outras empresas, que supostamente substituiriam a Triumph, eram em quantidades demasiado pequenas: “Muitas vezes, não chegavam a 100 peças. Ora, para além de desperdiçarem a capacidade de produção, também tinha efeito sobre os ordenados – nós ganhávamos todos um salário baixo que era aumentado em função da nossa produtividade. Não havendo peças, esse ordenado baixava muito.”
Em outubro, não havia quase trabalho, e colocaram parte das pessoas em casa com os salários pagos. “Os gerentes foram sempre dizendo que ‘não nos preocupássemos com a falta de trabalho, porque havia muito dinheiro”, relembra Lucinda. Quando chegou o Natal, não receberam a totalidade dos ordenados de novembro e ainda não lhes pagaram o subsídio de Natal, e janeiro já vai a meio.
Pouco tempo depois, os dois gerentes demitiram-se. Um homem acrescenta na conversa: “Não deve ser a primeira vez que eles fazem este tipo de coisas, porque o patrão deixou de arrumar o carro aqui e passou a arrumá-lo no Lidl, para não sabermos se estava cá.” Para os vários trabalhadores que se concentram à nossa volta, a empresa que comprou a Triumph apenas queria desmantelar a fábrica. Ganharia com a venda das instalações e máquinas e a Triumph ficava limpa da falência. Carlos Sousa lembra que começaram logo por vender as instalações de Camarate.
Lucinda e Maria José afirmam que querem apenas aquilo que é justo, mas que esta manobra foi feita para que os 500 trabalhadores não recebessem tudo a que tinham direito. Para muitos, como afirma a mais nova, Carla, a situação é muito difícil: “Gente com 40 e 50 anos é velha para arranjar trabalho e nova para ir para a reforma.” Maria José só espera que “as pessoas se mantenham unidas até ao fim”. Neste processo, segundo garante Lucinda, “tivemos sempre o apoio do sindicato, que nos alertou há bastante tempo que devíamos ter-nos mobilizado contra a deslocalização. Quando, numa sexta-feira, os patrões disseram que iam buscar um material de uns clientes, nós, que tínhamos acesso aos computadores, percebemos que eram coisas da fábrica”. Perante essa situação, os trabalhadores telefonaram para o sindicato, que os alertou para que, numa situação de insolvência, não pode sair nada.
“Viemos logo para a porta para não deixar sair nada.” Nem os carros dos gerentes saíram. Tiveram de ir embora a pé. “Estes senhores nunca pensaram que nós, mulheres – apesar de também haver cá homens grandes e bons – nos mobilizássemos tão depressa”, conclui uma das trabalhadoras. Amanhã passam duas semanas que os trabalhadores da antiga Triumph estão a dormir às portas do seu trabalho.