O regulador da energia em Portugal afirmou-se, ao longo dos seus 20 anos, como o mais capaz de todos os que, setorialmente, se dedicam à regulação técnica, económica e para os consumidores.
Acontece que estes dois anos últimos nos deixaram bastantes preocupações sobre a aparente perda de importância da ERSE, fruto das decisões políticas implicadas pela maioria parlamentar que se consolidou.
Nos primeiros dez anos, numa liderança tecnicamente competente, a Entidade Reguladora dos Serviços Elétricos foi fonte das regras de liberalização dos mercados, foi garante de um processo decente de evolução que partiu de empresas, marcadamente públicas, para a modernização e internacionalização, foi criação de um mercado ibérico que hoje caminha para a maturidade.
A segunda década foi tímida. Talvez tenha sido marcada pela crise financeira de 2008, pela instabilidade política posterior e pela intervenção externa que marcou a segunda fase do decénio. A incorporação do gás natural na regulação mimetizou o património da eletricidade, não havendo, como acontece em congéneres europeus, a separação dos negócios.
Mas foram também estes anos mais recentes os da afirmação da regulação para os consumidores, o nascimento da supervisão integral. O aparecimento de um regime contraordenacional obriga a ERSE a não parar nos gabinetes, a não encerrar na contabilidade criativa os impactos das sanções.
Uma análise focada só no ente ERSE indica também uma dificuldade em responder ao tempo da comunicação. Na primeira década, sem redes sociais, sem formação pulverizada de opinião, sem obrigação de gestão, ao minuto, dos impactos comunicacionais, a ERSE poderia ter uma presença majestática. Porém, por tempos mais recentes, essa presença não é compatível, não chega aos cidadãos com a simplicidade que se impõe. O processo tarifário, as deliberações normativas dos seus órgãos serão, progressivamente, questionadas, conflituais, por vezes danosas para os consumidores, empresas e entes políticos.
O que mais interessa, neste olhar crítico, é perceber se a ERSE é habilitada para estar à altura dos tempos que caminham. Sim, esta entidade administrativa independente tem o melhor corpo técnico regulador, tem ainda a maior autonomia na consagração da não captura e tem, por incrível que possa parecer, uma doutrina que ainda não foi ameaçada em definitivo.
Mas a existência de conselhos de opinião, geral e tarifário, por onde passa uma pré-leitura das decisões regulatórias, mesmo que se questione, por vezes, a sua funcionalidade ou representatividade, cria escapes perante as radicais decisões e elimina conflitos desnecessários. Aqui importaria assegurar um contributo mais robusto do interesse dos consumidores, mas isso levar-nos–ia a uma reflexão sobre a eficiência e independência das estruturas representativas dos utilizadores.
Olhando a realidade atual da ERSE, importa ter em conta alguns desafios que são urgentes. O primeiro é o da garantia absoluta da sua independência. Pensamos que os governos só têm benefício em não tratar simbolicamente a ERSE como mais uma direção-geral, não se socorrerem dela para amplificar ganhos políticos, não determinarem, publicamente, obrigações de estudo, formulação de propostas de políticas públicas e de acompanhamento, típicas da administração direta.
Por outro lado, a ERSE só tem vantagens em afirmar dois campos bem concretos: os consumidores e as empresas. Sim, como acima referido, os consumidores são uma obrigação central, mas a saúde das empresas em mercados globais e abertos deve ser uma obrigação cada vez mais presente. É por isso que importa ter em conta que o regulador (também o poder político) não pode deixar de ser forte com a EDP, mas deve ser consciente dos impactos das suas decisões. A EDP é, tão-só, a melhor empresa portuguesa, a que tem melhor gestão, a que mais garante o espaço de dominação, designadamente num apoderamento essencial ao progresso económico, à soberania nacional e à sobrevivência do Estado. E se tratarmos como deve ser a EDP também poderemos e deveremos tratar, em concomitância, os restantes operadores, não lhes negando o espaço de crescimento nem esquecendo que não nasceram como incumbentes do Estado.
Há ainda a leitura da sua estrutura interna. A ERSE atual é seca na disponibilidade dos seus recursos mas, mesmo assim, tem disfuncionalidades que importa corrigir com urgência. A primeira é a que se prende com a integração da regulação económica numa única direção. Os custos e proveitos e as tarifas e preços devem ser unificados, devem ter uma perspetiva de leitura integrada. Teríamos assim a regulação económica, técnica e para os consumidores em três unidades orgânicas autónomas. Mas deveríamos fazer nascer uma outra unidade interna, relevantíssima e urgente – a que deveria acompanhar a inovação (tudo o que é smart) e a internacionalização. Portugal tem uma agenda externa no setor da energia que obriga a competências negociais de que a ERSE dispõe de forma não integrada e pulverizada.
Por último, uma leitura do braço armado. A ERSE dispõe de um regime contraordenacional, de um sistema de inspeções e auditorias. Mas não chega. Precisa de ser seletiva, pedagógica, agregadora dos defeitos do sistema, não respondendo à peça perante as emergências do dia. Carece ainda, apesar dos desenvolvimentos recentes, de melhorar muito o seu património regulamentar, de o consolidar, de o fazer intemporal e fixo, garantia jurídica de sucesso em contencioso. Carece de autorizar a presença da técnica jurídica em desfavor das idiossincrasias engenheirais, obrigando-se a ganhar os apoios académicos para as suas grandes causas de afirmação regulamentar.
Como se pode ver a regulação energética para a terceira década? Há outras três linhas de ação que serão marcas. A primeira tem ligação com os mercados europeus. A regulação será, cada vez mais, ampla e integrada, marcada pelos mercados financeiros. A segunda relaciona-se com a estabilidade dos setores. Os poderes políticos podem ter a tentação de desgraduar institucionalmente a ERSE para promoverem uma intervenção ao cêntimo. A ERSE deve ser afirmada com coragem liderada, não temente do confronto mesmo público, tanto na comercialização energética como nas redes. A terceira e mais importante, a do alargamento do âmbito de ação. A ERSE deve incorporar, como já afirmámos, combustíveis, como previa, aliás, a legislação pensada em 2006/2007, deve regular a fileira global do gás e deve, por ser importante para uma leitura integral das utilities, inserir a água – proposta que, não negamos, mais implica com a bonomia portuguesa. Importa ainda reforçar a atenção ao controlo dos ativos estratégicos que, por agora, são detidos por empresas privadas e de capital estrangeiro.
Tudo isto não está separado da necessidade de ter em conta que os aparelhos técnicos da regulação são, em Portugal, de grande exigência e que as lideranças devem ter os critérios genéticos da coragem e da independência. A ERSE é uma referência; a regulação do setor energético, um exemplo; mas o caminho é de grande perseverança e cheio de interrogações.
Declaração de interesses: O autor exerceu as funções de administrador da ERSE de 2010 a 2015. O período de “nojo”, legalmente imposto, terminou em julho de 2017.
Deputado do Partido Socialista
Escreve à segunda-feira