António Carlos Monteiro. ‘A lei faz dos partidos empresas em offshore fiscal’

António Carlos Monteiro. ‘A lei faz dos partidos empresas em offshore fiscal’


O deputado e ex-secretário geral do CDS-PP revela que havia mais alterações polémicas além das duas que seguiram em frente e que motivaram o veto de Marcelo


Ficou surpreendido com a recusa dos outros partidos em debater a lei do financiamento?

Fiquei surpreendido, até porque o veto presidencial tinha sido fundamentado exatamente nisso – além de o Presidente ter demonstrado dúvidas quanto a duas normas – o veto tinha sido fundamentado na falta de esclarecimento da opinião pública. Faltar a debates, creio, não esclarece a opinião pública. Teremos agora oportunidade para fazê-lo. Os partidos que são preponentes têm obrigação de explicar as razões pelas quais optaram por, à boleia das alterações pedidas pelo Tribunal Constitucional, introduzir aquelas duas normas.

Que são, comparativamente ao resto, substanciais? 

Do nosso ponto de vista, são. Há pessoas que dizem que “foram duas meras alterações pontuais”. Não são pontuais. São uma mudança de sistema por razões bastante claras: nós temos um modelo assente maioritariamente em subvenção pública. É a contrapartida que foi encontrada para um aumento de fiscalização e transparência quanto às contas dos partidos. Mas permitir-se que os partidos se transformem em empresas de angariações de fundos, em que desenvolvem atividades comerciais cujo lucro é receita dos partidos, é outra coisa. No que diz respeito à angariação de fundos aquilo que é dito aos partidos é: vão fazer negócios para com o lucro desses negócios se financiarem. É transformar os partidos em empresas num offshore fiscal.

Em que sentido? 

No sentido em que na lei anterior existia uma ligação clara àquilo que é a “mensagem política” e passou a estar apenas previsto que fosse a “atividade partidária”. Basta os partidos apresentarem uma fatura com o seu NIF para a Autoridade Tributária ser obrigada a subsidiar. Os partidos já não cobram IVA: se ainda por cima aquilo que está previsto é isentá-los como consumidor final, significa que a administração fiscal é que paga aos partidos o IVA que os partidos pagaram às empresas e que as empresas pagaram à administração fiscal. É claramente um subsídio. É abrir a porta a que todas as despesas declaradas pelos partidos possam ser objeto de subsídio.

Como, por exemplo, imperiais?

Imperiais, empreitadas, e todo o tipo de contratações. 

Falou do apelo feito pelo Presidente da República. Sente que os partidos, ao não quererem debater o assunto, estão a esquecer esse apelo?

Os partidos que votaram a lei não ouviram aquilo que ao longo do tempo várias pessoas têm dito, nomeadamente no próprio grupo de trabalho, como o CDS. Várias vezes chamámos a atenção, desde o início. 

Desde abril?

O processo começa com uma iniciativa do Tribunal Constitucional, não de nenhum partido. Quando nos propõem a existência de um grupo de trabalho para ouvir o Tribunal Constitucional e resolver problemas de constitucionalidade, é evidente que o CDS dá o seu acordo. Sucede que posteriormente, depois já termos ouvido o TC e de termos as sugestões do TC, entrou o chamado ‘já agora’, nomeadamente em maio. Repare que houve propostas que queriam somente melhorar a legislação e não tiveram a oposição do CDS, mas apareceram outras, além das duas que já referi, que foram caindo pelo caminho.

Por também serem polémicas?

Por também serem polémicas.

Por exemplo?

A alteração do limite quanto à despesa em outdoors. O CDS propôs que se proibissem os outdoors e está neste momento na lei que é não é possível gastar mais do que 25% da subvenção. Foi proposta uma alteração desse valor e o CDS foi contra. Acabou de ser introduzido e não estamos de acordo que se mexa no valor. 

Houve, então, várias ‘tentações’ dentro do grupo de trabalho.

Eu não queria colocar a questão assim. Houve várias ‘vontades’ no âmbito do grupo de trabalho de mudar o regime. Àquelas duas, dissemos que não desde o início. Não era possível que à boleia do Tribunal Constitucional se quisessem fazer duas alterações tão substanciais. Ficaram ambas a vermelho no documento de trabalho por não reunirem consenso – e o consenso havia sido garantido até por ser uma matéria oriunda do Tribunal Constitucional. Para nós, consenso era unanimidade. Houve uma tentativa de agendar para antes das férias do verão.

E o CDS disse…?

Que era inadmissível alterar-se uma legislação com esta relevância em cima de um processo de pré-campanha eleitoral (autárquica). Os trabalhos continuaram depois do verão.

Qual dos partidos tomou essa iniciativa?

Essencialmente, partiu dos partidos que defenderam estas alterações – PS e PSD – com o argumento da urgência do Tribunal Constitucional; urgência que nos foi transmitida pelo próprio TC. 

E as duas alterações mais controversas (fim do limite da angariação de fundos e generalização da isenção do IVA) já estavam inseridas no pacote discutido antes do verão?

Já. Tinham sido propostas, nós tínhamos dito que não e a seguir quiseram avançar para esse agendamento antes do verão e nós dissemos que nem pensar. Isto no âmbito do grupo de trabalho. Depois mantivemos a nossa posição. Na conferência de líderes, no dia 19 de dezembro, dissemos para retirarem as duas normas para se conseguir o consenso acordado desde o início, mas disseram-nos que as normas não saíam. “Se quiserem saiam vocês” e nós saímos. As normas estiveram sempre a vermelho por não terem o nosso acordo. 

Entre a tentativa de antecipar para antes do verão e 19 de dezembro, se o vosso desacordo já estava patente, ficaram por quê? Que tipo de ligação havia entre quem estava no grupo de trabalho em nome do partido e a direção do CDS? 

A ligação é a normal. Com a liderança parlamentar e com a liderança do partido. 

Portanto, tanto Nuno Magalhães como Assunção Cristas estiveram ao corrente dos vários desenvolvimentos. 

Não era um acompanhamento diário até porque as reuniões não o eram. Tomaram conhecimento obviamente daquilo que para nós eram duas normas que estavam a ocorrer à boleia do que o TC pedira. Eu informei a liderança parlamentar e a liderança do partido também esteve informada de que estavam a querer introduzir estas duas alterações. Tanto uma liderança como a outra disseram que se a posição do CDS era essa (contra as alterações), davam apoio total para nos opormos.

E pareceu-lhe logo mal?

Quando apareceram as propostas, a avaliação que fiz foi negativa e consultei o partido e as direções. Todos concordaram que eram duas matérias às quais o CDS não poderia ceder em caso algum. Ia no sentido contrário de toda a legislação que tem existido, até a de nossa iniciativa. Repare: propusemos que se acabasse com os outdoors e acabou por ficar uma limitação, que queremos que se mantenha; o CDS já propusera, no tempo da troika, que se reduzisse a subvenção, e depois da troika ficou estabelecido que 10% desse corte passaria a permanente nas subvenções e nas despesas de campanha; o CDS propôs o fim da isenção de IMI. Estas duas propostas iam contra a lógica de tudo isso. Foi uma questão de coerência.

É um momento de fricção entre duas bancadas usualmente amigas: a do CDS e a do PSD.

Neste tema, há um evidente afastamento entre todos os partidos. Mas ambos os candidatos à liderança do PSD têm uma visão crítica em relação à forma como o assunto se passou. O que estranhámos foi ficarmos sozinhos naquele grupo de trabalho. O que apreciamos é estarmos muito bem acompanhados pela sociedade. Nós alertámos para as consequências destas intenções e mesmo assim houve partidos que insistiram que tinha de ser assim e que ninguém estranharia. A nossa posição é muito clara: manter a transparência e evitar despesas loucas em campanhas eleitorais. Às vezes há aquela ideia de que quanto mais se gasta melhor vai. Nós temos as maiores dúvidas acerca da eficácia desse modelo de despejar propaganda para cima dos eleitores. 

Mas se sentiam tão isolados porque é que não abandonaram o grupo de trabalho?

Por uma razão: o que estava combinado desde o início é que só avançaria um projeto consensual. O CDS fez questão de ficar até ao fim para que isso se cumprisse. A rotura só se deu no dia 19 de dezembro, na conferência de líderes, quando se viram para nós e dizem: “As normas não saem. Se quiserem, saem vocês”. 

Isso foi-lhe dito a si?

Foi, por um dos membros do grupo de trabalho.

Quem?

Não vou dizer quem. Mas digo-lhe com toda a franqueza: as questões do financiamento partidário são questões que acabam por ser conhecidas por muito pouca gente do ponto de vista técnico. As diferenças entre uma contribuição, um donativo, uma angariação de fundos… Poucos conhecem e não cometem erros nesse debate. Já fomos atacados pelo PCP, que diz que há uma campanha de mistificação e mentira, ao mesmo tempo que confundem conceitos e usam umas regras para defender outras. Nós temos um bom conhecimento da lei e estamos totalmente à vontade para debatê-la com qualquer um que a queira debater…

Mas faltou conhecimento técnico ou aproveitou-se a ignorância geral para passar facilitações?

Acho que é importante haver um debate público para todos ficarem a perceber o que está em cima da mesa. O desconhecimento geral fez com que se introduzisse, depois da questão ter rebentado, algumas afirmações que não correspondem à realidade. 

Por exemplo?

Quem diz que não desapareceram as limitações aos donativos. É que as limitações aos donativos não são nas angariações de fundos… A questão mais grave de todas é o IVA nas campanhas eleitorais. 

Porquê?

Os partidos dizem que esta lei não mexe na questão do IVA nas campanhas eleitorais, o que é verdade. Qual é a mistificação? É que a entidade das contas informou a Autoridade Tributária que o IVA das campanhas eleitorais não é suscetível de ser recuperado, o que significa que a AT começou a mandar para trás todas as faturas a ver com campanhas eleitorais. Com esta alteração à lei, que diz que a Autoridade Tributária tem de pagar o IVA que lhe for apresentado pelos partidos e ponto final, deixa de haver esse crivo. Beneficia-se o infrator. E nós chamámos a atenção para isto. Todos os partidos dizem que não pediram o IVA da campanha, à exceção do PS… que tem processos pendentes e tem a teimosia de insistir que o IVA da campanha deve ser, no fundo, subsidiado. Repare: a subvenção pública já paga a campanha. Se eu receber uma subvenção de 100 e pedir o IVA dessa campanha, estou a beneficiar duplamente. 

Se havia esse tipo de desacordo tão profundo, por que não vieram a público em mais de seis meses?

Em primeiro lugar, porque aquilo que estava a ser trabalhado era um texto consensual e havia um compromisso para alcançar um consenso. Até ao final, aqueles dois pontos ficaram a vermelho. A nossa insistência era essa: são os dois pontos que têm de sair; não somos nós. 

Insistiram durante quanto tempo, tem ideia?

O grupo de trabalho termina a 18 de outubro, e é depois entregue às lideranças parlamentares após ter ido à primeira comissão, com a noção de que sobre aquelas normas não havia acordo.

Depois de todo este episódio, acha ou não que houve falta de transparência no grupo de trabalho?

No grupo de trabalho, até ao momento em que a questão se torna o “saem vocês e as normas ficam”…

… mas isso foi em dezembro…

… certo, até aí, se aquelas duas normas tivessem saído, teria corrido bem. Bastava as duas normas terem saído para aquilo que nós estávamos a fazer fosse resolver problemas técnicos. 

Teria sido mais prudente com outro calendário?

Quem insistiu que as normas ficassem é quem tem de responder a essa matéria.

A ausência de atas e de registo audiovisual não poderá estar também implícita nas críticas do Presidente da República?

A crítica do Presidente – e isso está bem patente no texto – é que se queriam alterar aquelas duas normas tinham obrigação de fazer um debate público e o grupo de trabalho não poderia ter funcionado assim. 

Mas sem essas duas normas, o grupo de trabalho poderia ter funcionado daquela maneira?

Sem as duas normas, o grupo de trabalho poderia ter funcionado daquela maneira. É a forma de conseguir que nenhum dos partidos reivindica a autoridade para si e de conseguir ouvir o outro órgão de soberania.

E o anonimato das propostas, não é condenável?

Confesso que a mim me fez alguma confusão. 

Mas o CDS participou.

Não fizemos nenhuma proposta naqueles moldes. Eu sei de quem é a proposta A, a proposta B e a proposta C. Nenhuma é do CDS. Que isso fique bem claro. 

E porque não houve uma proposta vossa?

Porque o objetivo daquele grupo de trabalho, para nós, era resolver os problemas levantados pelo Tribunal Constitucional.

A minha questão é: se sabiam que os outros partidos queriam algo que o CDS achava condenável porque é que continuaram a conversar com eles?

Porque eles só não deixaram cair essas alterações em dezembro! Até dia 18 de outubro, o texto que sai da primeira comissão para as lideranças parlamentares tem assinalado a vermelho essas duas alterações.

Mas não é por estarem a vermelho que deixam de lá estar…

Certo, mas também não se pode omitir o que se passou no grupo de trabalho. Nós opusemo-nos e estivemos contra. Estamos de consciência tranquila. Avisámos desde o início. E deixe-me terminar com uma coisa: quem fez esta lei foi a Assembleia da República, quem aprovou foi o PS, o PSD, o Bloco de Esquerda, o PCP e os Verdes. Tentar culpar o Tribunal Constitucional por aquilo que fizeram é, para nós, profundamente errado.