Usava um vestido claro, sem mangas, com um laço discreto abaixo do decote, eyeliner preto, carregado, a emoldurar–lhe uns incríveis olhos já escuros, um sinal pronunciado – como era moda – e o cabelo, muito louro, cortado a direito pelo início do pescoço. Uma imagem de doçura, candura e feminilidade juvenil. Foi assim que France Gall surgiu em 1965 na mais importante competição de música europeia, o Festival Eurovisão da Canção. E, não sendo a favorita e não participando pelo seu país de nascimento – embora francesa, concorreu pelo Luxemburgo –, sagrou-se vencedora. Tinha então 18 anos e o público rendeu–se à voz de menina, condizente com a imagem, em “Poupée de cire, poupée de son”, tema composto por Serge Gainsbourg. Morreu este domingo, aos 70 anos, vítima de cancro. Estava internada desde dezembro devido a uma infeção. “Há palavras que nunca se querem pronunciar. France Gall regressou ao ‘Paraíso Branco’ [“Le Paradis Blanc”, uma das suas canções que se tornou um sucesso nos anos 90] dia 7 de janeiro, depois de dois anos a desafiar, com discrição e dignidade, o reaparecimento do cancro”, anunciou a agente da cantora, Geneviève Salama.
Os anos do yé-yé France tinha 18 anos quando venceu a competição seguindo o livro de estilo yé-yé, uma apropriação muito francesa do inglês yeah yeah, roubado à canção “She Loves You”, dos Beatles. Em França, este era o estilo musical em voga na década de 60, altura em que a pop era feita por estrelas como Françoise Hardy, Sylvie Vartan ou Johnny Hallyday, que também morreu recentemente. Sobre a vitória no Festival Eurovisão da Canção, France há de contar, muito mais tarde, que foi uma das piores noites da sua vida. “Um autêntico pesadelo”, definiu ao jornalista e apresentador francês Stéphane Bern. E um pesadelo que começou logo na tarde de ensaios, em que foi vaiada pela própria orquestra, que considerava que aquele tipo de música era indigno do certame. E, depois do ensaio, um dos membros da sua comitiva – que foi também o seu primeiro amor, Claude François – acusou-a de ter cantado “desafinada” e “fora de tom”. François acabou a relação naquela noite, contou a cantora, que acabou por subir ao palco para receber o prémio em lágrimas – que eram, afinal, de tristeza. Mas ainda antes de “Poupée de cire, poupée de son” e de levar o troféu, neste caso, para o Luxemburgo, France já era conhecida no meio musical dos anos 60 e já era uma das caras do yé-yé.
Laisse Tomber Les Filles France Gall nasceu Isabelle Geneviève Marie Anne Gall em Paris, a 9 de outubro de 1947, já dentro do meio: era filha de Cécile Berthier e de Robert Gall que, depois de uma carreira com menos impacto como cantor lírico, se tornou um letrista de renome ao escrever temas para intérpretes eternos da música francesa, como Charles Aznavour ou Édith Piaf. E foi precisamente Robert Gall que a incentivou a perseguir o caminho das canções e a enviar as suas gravações para a Philips, que viria a ser a sua primeira editora.
Aos 15 anos, Isabelle já era France e grava o primeiro álbum. Aos 17 conhece o primeiro sucesso musical com o tema “Laisse Tomber Les Filles”, em 1964, escrito por Serge Gainsbourg, que se rendeu ao seu estilo de menina. E aproveitou-o, com uma colaboração que resultou em vendas astronómicas – “N’écoute Pas Les Idoles” liderou a tabela de vendas em França –, mas que não terminaria da melhor forma.
No verão de 1966, France tinha 19 anos quando lança o tema “Les Sucettes à l’anis” [Os chupa-chupas de anis], novamente um tema de Gainsbourg. A música, aparentemente inócua mas altamente sugestiva, contava a história de uma menina que adorava chupa-chupas com sabor a anis. Assim que foi lançada, a letra maliciosa de Gainsbourg gerou controvérsia.
France explicou anos depois, num documentário exibido na France 3, que só após sair de França percebeu o duplo significado das palavras e falou da humilhação que sentiu e de como isso mudou a sua relação com os homens. “Nunca teria feito essa canção se me tivessem explicado o seu verdadeiro sentido”, afirmou na ocasião. “Eu era uma menina num ofício de adultos, um ofício muito duro e muito cruel para uma adolescente.”
E nunca mais voltou a cantar “Les Sucettes à l’anis” nem a trabalhar com Gainsbourg,
La Déclaration d’amour Em 1973, a sua carreira estava numa espécie de banho-maria quando conhece Michel Berger. O encontro vai mudar-lhe a vida. Berger escreve-lhe o tema “La Déclaration d’Amour”, que se torna um êxito em 1974. Casam-se em 1976, e até à morte prematura dele, em 1992, vítima de um ataque cardíaco, France não interpreta canções de mais ninguém. “Ça Balance Pas Mal à Paris” (1976), “Musique” (1977), “Débranche” (1984), “Babacar” (1987) e “Ella, Elle L’a” (1987) foram alguns dos sucessos. A dupla chegou ao seu pináculo em 1979, com a ópera rock “Starmania”, composta por Berger e Luc Plamondon, da qual saíram êxitos como “Il Jouait Du Piano Debout” (1980) e “Résiste” (1981).
Gall estava retirada dos palcos há 20 anos. Depois do marido, perdeu a filha em 1997, vítima de fibrose cística. E, entre os dois infortúnios, foi-lhe diagnosticado um cancro da mama. O seu oitavo e último álbum de estúdio levava o seu nome e foi lançado em 1996.
Embora afastada dos palcos, nunca abandonou as causas humanitárias a que se dedicava. Na hora da sua morte, o presidente francês, Emmanuel Macron, elogiou o que disse ser o “exemplo de uma vida dedicada aos outros, àqueles que amava e àqueles que ajudava”. Nos seus obituários publicados ontem nos jornais, do “Le Monde” ao “Guardian”, há uma ideia que prevalece: Paris perdeu mais um ícone.