Resistem e sobrevivem


Mais um ano que passa de acção e reacção dos “resistentes” e “sobreviventes” que povoam o país político, empresarial, estadual e associativo


Este país em que vivemos alimenta e é fértil em “resistentes” e “sobreviventes”.

Não falo dos que, no sentido mais nobre, resistem e sobrevivem a doenças graves, a fatalidades sérias e a imprevistos desmedidos de vida e de família. Esses devem ser os nossos exemplos, pela coragem e pela persuasão com que enfrentam e superam as contrariedades e as impotências. São tantas vezes o nosso referente para relativizarmos o que nos problematiza e nos incomoda. Relativizar, isso mesmo. Perante esses dramas, deveremos seguir em frente e motivarmo-nos pela real medida dos nossos contratempos, inquietações e oposições – de uma outra dimensão e numa outra escala.

Falo, em vez desses admiráveis lutadores, dos que se perpetuam, mais ou menos sincopadamente, nos cargos e nas funções, aconteça o que acontecer, dando todas as voltas possíveis depois de tudo (ou quase tudo) ter acontecido à sua volta. Lutadores de outra estirpe: nos cargos políticos, nos partidos, nas autarquias, nas (várias) administrações públicas, nas empresas, nos sindicatos, nas associações, nos clubes e sociedades desportivas. Pessoas de carne e osso, destinadas ao monopólio da decisão, da influência, do protagonismo e do carreirismo. Muitos começaram por ser arrivistas, sem preparação ou currículo, mas o poder evolutivo formatou-os e convidou-os a assumirem o perfil dos trepadores. Incorporaram conhecimento, rodearam-se das fidelidades, exigiram as lealdades, subiram com os resultados. Chegaram ao cume – ou perto dele –, onde encontraram resistentes de outra cepa e categoria, frequentemente sem olharem a métodos e a procedimentos. Adquirido o poder que traz temor reverencial e fidúcia grupal, só podem crer que valeu a pena – o que seriam hoje sem essas práticas, que aceitaram e difundiram sem reservas, em troca de obediência e a companhia de alguns dos melhores? Outros, antes de entrar no circuito, eram já respeitados pelo estatuto adquirido, pela carreira noutro posto, pela posição do dinheiro ou pela ostentação intelectual ou académica. Mas esse outro percurso tem regras próprias, outro tipo de protagonistas, uma outra envolvência – adaptam-se e resistem para sobreviver, fazendo o seu caminho; ou desistem, depois de cumprir (com mais ou menos tempo) o seu papel e exercer as suas competências, e saem do circuito, voltando ao trilho anterior e/ou tomando outras opções. Não sem antes serem tantas vezes perseguidos, escavados, atormentados e marcados, a fim de serem testados no seu fôlego nervoso pelos verdadeiros sobreviventes, que sempre se revelam desconfortáveis com a diferença e o brilho dos “novos”, com receio (pelo menos este) de que possam vir a tornar-se tão sobreviventes como eles.

Ser verdadeiramente sobrevivente implica também resistência à derrota, ao desaire, à justiça e ao escrutínio. Para os verdadeiros sobreviventes, regressar – ou manter-se de pé no cargo – depois da suspeita, da condenação, do falhanço e do revés é o triunfo supremo. A prova última do catálogo da resistência, que nunca dá uma batalha como a última. Implica visibilidade, notoriedade, comunicação, inteligência, análise, perspicácia, instinto, ascendente, autoridade. E muita vontade, iniciativa, cintura, domínio e atenção.

Mas ser sobrevivente é ainda, benignamente, fazer o roteiro das convicções e dos desafios. Há quem resista para fazer história e cumprir o objectivo. Lutando contra as tradições, os atavismos, as ignorâncias, os interesses, as corporações e os miserabilismos. Decidindo onde antes havia omissão e indiferença. São os sobreviventes que resistem para mudar e mudam para resistir.

De todos estes resistentes se fez este ano e se farão os próximos. Com a expectativa de saber quanto mais tempo resistem e quantos se prestam a ser os resistentes do futuro.

Professor de Direito da Universidade de Coimbra. Jurisconsulto. Escreve à quinta-feira