A supervisão financeira portuguesa continua em negação. Primeiro porque não existe, no nosso país, um mercado de capitais, ao contrário da mensagem que se procura passar e fomentar; depois, porque os empresários não querem estar expostos a uma regulamentação anacrónica, que muitas vezes aparece de interesses, nem perder controlo dos seus negócios; e, por último, o problema da desconfiança que se verificou depois das perdas colossais que muitos dos investidores observaram nos últimos anos.
Há um real problema que os poderes públicos não querem encarar de frente – a breve trecho não existirem operadores portugueses para supervisionar, mas entidades estrangeiras a atuarem em Portugal, através do passaporte europeu, e a captarem investidores portugueses.
Esta circunstância soma-se à já há muito verificada da transferência das sedes sociais de grandes grupos empresariais portugueses para outros países: a incerteza jurídica e tributária e a ausência de regulação credível contam muito para os grandes players.
A tentativa de esconder a incompetência e a desresponsabilização das entidades de supervisão traduziu-se na avalanche de legislação, a grande maioria impercetível aos investidores e aos comerciais das instituições financeiras. Para a CMVM, por exemplo, não estamos perante um tsunami, mas uma oportunidade. Sê-lo-ia não fosse a guerrilha interna da comissão e a falta de interação com as instituições financeiras.
Trabalhar em parceria, como acontece com os níveis de audição dos operadores verificados em Espanha, aumenta sempre o campo de visão e permite entender os problemas da supervisão na ótica do supervisionado.
Neste momento, em Portugal, estamos perante elevados custos, esforço, tempo necessário para formação e adaptação de um universo muito específico quando, a menos de um mês da entrada em vigor da diretiva de mercados de capitais (DMIF II), ainda não existe a transposição obrigatória e completa dessa mesma diretiva para ordenamento jurídico nacional. Este é um exemplo, o maior exemplo, que nos confirma o pouco cuidado dos poderes públicos, a pouca preocupação dos reguladores com as consequências nas instituições portuguesas já de si com menor dimensão quando comparadas com as congéneres europeias.
O que importa, nesta fase, é impor a autoavaliação, autorregulação, por forma a que a supervisão nunca mais seja responsabilizada. O objetivo de tantas regras é facilitar o lado policial e as multas, indicando sempre as falhas no controlo interno, seja dos auditores internos, seja dos compliances. Curiosamente, e por outro lado, nenhum auditor externo ainda foi condenado pelas inúmeras falhas da banca em Portugal nos últimos anos e talvez se compreenda esta inação pelo facto de assumirmos o universo das grandes empresas de auditoria como a porta giratória do recrutamento de reguladores e técnicos de regulação e supervisão.
De regresso à DMIF II, importa que os portugueses saibam sobre a impossibilidade prática da sua entrada em vigor em janeiro, uma vez que, a título de exemplo, as alterações aos contratos de registo e depósito ou às condições gerais dos contratos celebrados, devem ser comunicadas aos clientes com um mínimo de um mês de antecedência. E se não existe lei, quais as normas que serão alteradas no quadro atualmente em vigor? Que procedimentos e implicações se exigem?
Acompanhando tudo isto, as denominadas fintechs e ICO (inicial coin offerings) ganharam dimensão impossível de prever há alguns meses. Operando num ambiente sem qualquer tipo de regulação, com prejuízos potenciais avultados para os investidores, não há, em Portugal, quem saiba explicar o que realmente se passa. A este respeito o Banco de Portugal e a CMVM chutam para as fintech, este novo chavão que tudo aglutina, as consequências da sua inação, já que até dá jeito a grandes bancos poderem experimentar novas tecnologias sem sofrerem as consequências negativas. Estamos a dias de novos impactos no mercado financeiro, com novas e colossais perdas que se vão revelar e de novas obrigações políticas e orçamentais, para o Estado e sempre o Estado, que aparecerá como último recurso.
Era agora, neste novo tempo que se antecipa, desde que ponderado, acompanhado e visionário, que se poderiam criar as condições para dois objetivos essenciais: aumentar o nível de proteção dos aforradores e, simultaneamente, gerar um clima de confiança nas empresas relativamente à diversificação de financiamento.
Ainda no universo da supervisão financeira, os dois pilares já se mostraram contra o pacote Tavares. Já havíamos antecipado o fracasso das propostas apresentadas. A crise posterior a 2008 trouxe a oportunidade de se colocar em discussão a segmentação das instituições financeiras em áreas de negócio delimitadas, como sejam os investimentos financeiros e a área de seguros. O regresso do Glass Stegall act, tendo ainda sido debatido, rapidamente foi metido na gaveta graças à pronta ação dos bancos centrais que impulsionou os mercados financeiros para máximos históricos.
A onda de fusões e aquisições nas décadas passadas criou instituições grandes demais para falir que abarcaram todo o tipo de serviços de investimento e de enorme complexidade. Por este tempo perdeu-se a oportunidade de promover a minoração da dimensão dessas empresas e de fomentar a concorrência em áreas especificas. Por exemplo um banco pode oferecer a corretagem ou os seguros de saúde e assim garantir o envolvimento do seu cliente noutras áreas. Com este comportamento consegue fidelizar o cliente, garantir rentabilidade, mas está na prática a fazer dumping face às empresas especializadas que não podem fazer “cross-selling”.
Quanto ao investidor com perdas, esse ficou esquecido pelas três entidades a quem pode reclamar. Um aforrador com depósitos, instrumentos financeiros e/ou seguros, em pacote, terá de se queixar ao BP, à CMVM, e à Autoridade de Seguros, demorando anos a ver as suas questões resolvidas, constatando a arte de empurrar as decisões de uns para os outros.
É perante toda esta imensa manta de dúvidas que interessa regressar atrás. Como é possível que, três anos após a queda do BES, a CMVM não tenha divulgado quais os fundos que venderam as ações nos três dias que antecederam a resolução? Quem quer encobrir a CMVM? Como se revela na sua incompetência?
Aliás, este exemplo permite-nos questionar: na verdade para que serve verdadeiramente a CMVM? Não teríamos tido o mesmo resultado de total irresponsabilidade se não existisse regulador?
Os reguladores financeiros vivem hoje uma outra circunstância que já se havia verificado nos processos BPN e BCP. A incompetência jurídica. O tribunal de Regulação acaba de devolver, ao Banco de Portugal (BP), processos que implicavam antigos gestores do BES. Importa saber se é incompetência ou se é conluio. O BP não pode deixar de esclarecer publicamente o que aconteceu, o Ministério das Finanças deve obrigá-lo a esclarecer o que aconteceu.
Estamos perante uma supervisão tripartida que fecha os olhos às criptomoedas, que cria grupos de trabalho para não decidir nada, que não se preocupa com os prazos da implementação das diretivas e das suas consequências nas instituições, que se revela incompetente em processo judicial. Esta é a regulação financeira que continua a enganar-se a si própria e ao país.
Deputado do Partido Socialista