A morte, afinal, passou por ali


Há uns meses escrevi um artigo sobre a morte. Em concreto, sobre a ameaça de morte que pairava na casa de uns vizinhos meus. A doença mais estúpida e incongruente que assola a humanidade – o cancro


Era a história da Paula e do João (nomes fictícios). Eram um alicerce sólido na vida quotidiana de um prédio normal de habitação em Lisboa. Pela boa disposição, pela dedicação à conservação do prédio, pela constante disponibilidade para ajudar e colaborar com a restante “família” que com eles dividia um pequeno prédio de 4 andares.

Contra tudo o que desejávamos, a Paula perdeu a batalha contra a doença estúpida. Lutou sempre com todas as forças. Sempre a assumiu frontalmente e só já no final senti a sua hesitação em mostrar a sua força perante os vizinhos e amigos. Acabou por perecer de forma serena e pacífica.

No dia do velório, não contive as lágrimas quando uma das suas filhas me olhou, com os seus olhos verdes infinitos carregados de saudade, e me disse – ela ainda tinha força! Ela ainda queria lutar. Acredito que sim, mas já não era a “nossa” Paula. Já não era a mulher de sorriso rasgado e de olhos expressivos com quem costumava cruzar-me de manhã cedo enquanto passeava a sua cadela Margarida (nome fictício também).

Foram meses de luta e de um vazio de presença que foi aumentando à medida que a doença ia ganhando terreno também. Só hoje tomo consciência disso. Que o vazio que fui sentindo com as ausências da Paula e do João foi, ao mesmo tempo, uma espécie de estágio de habituação e de conformismo para o que viria a acontecer.

Só hoje me dei conta de que esse vazio vai ser para sempre. Só hoje, quando ao descer as escadas passei à porta de sua casa e vi centenas de sacos e caixas a serem transportados dali para fora. O João vai-se embora! Já sabia, claro. Mas foi uma estranha sensação, acompanhada por um aperto no peito que me fez sentir que deveria ter feito mais! Não sei o quê e provavelmente não havia nada em concreto de que o João e a Paula necessitassem. Mas senti-me triste e arrependido… de nada em concreto… apenas isso, triste e arrependido de não ter feito mais qualquer coisa.

Um dia, quando chegava, tarde, de um jantar de trabalho, olhei para a varanda de sua casa e lá estava o João, sentado, cabisbaixo, como que adormecido. Não hesitei, chamei-o e perguntei: “Ei, tens uma cerveja?” Ali ficámos pelo menos umas três horas. Eu a beber cervejas e o João a falar, quase que ininterruptamente. E rimos. Rimos muito mesmo! É impossível não rir com o João! O João é um tipo divertido, animado e bem-disposto, com um sentido de humor sublime. E que saudades tinha de uma boa gargalhada do e com o João.

Falámos de tudo um pouco. Da Paula, claro está, das histórias de 11 anos de vizinhança, de política e do futuro! De um futuro que o João terá de reescrever agora, sozinho, sem a Paula. Não sei se lho disse claramente porque estava tarde e estava difícil sair dali. Não queria ir embora e acho que não tive a coragem de lhe dizer. Mas acho que era isto que me faltava fazer. Acho que é por isto que, hoje de manhã, senti que devia ter feito mais.

A vida continua, João. Por mais difícil que se torne o caminho, ela continua. Não imagino o vazio que a Paula te tenha deixado, mas a tua força, a tua determinação, o teu bom humor e a pitada de loucura que todo o homem bom tem dentro de si precisam de ocupar esse vazio. Desculpa-me a frieza e a frontalidade, mas era o que te queria dizer. Vou sentir a tua falta e de trocar dois dedos de conversa no hall de entrada do prédio. Mas a vida continua.

A vida que tu e a Paula partilharam comigo jamais será esquecida. Mas há uma nova vida para viveres e que precisa de ti. Um grande bem-haja.

Escreve à quinta-feira


A morte, afinal, passou por ali


Há uns meses escrevi um artigo sobre a morte. Em concreto, sobre a ameaça de morte que pairava na casa de uns vizinhos meus. A doença mais estúpida e incongruente que assola a humanidade – o cancro


Era a história da Paula e do João (nomes fictícios). Eram um alicerce sólido na vida quotidiana de um prédio normal de habitação em Lisboa. Pela boa disposição, pela dedicação à conservação do prédio, pela constante disponibilidade para ajudar e colaborar com a restante “família” que com eles dividia um pequeno prédio de 4 andares.

Contra tudo o que desejávamos, a Paula perdeu a batalha contra a doença estúpida. Lutou sempre com todas as forças. Sempre a assumiu frontalmente e só já no final senti a sua hesitação em mostrar a sua força perante os vizinhos e amigos. Acabou por perecer de forma serena e pacífica.

No dia do velório, não contive as lágrimas quando uma das suas filhas me olhou, com os seus olhos verdes infinitos carregados de saudade, e me disse – ela ainda tinha força! Ela ainda queria lutar. Acredito que sim, mas já não era a “nossa” Paula. Já não era a mulher de sorriso rasgado e de olhos expressivos com quem costumava cruzar-me de manhã cedo enquanto passeava a sua cadela Margarida (nome fictício também).

Foram meses de luta e de um vazio de presença que foi aumentando à medida que a doença ia ganhando terreno também. Só hoje tomo consciência disso. Que o vazio que fui sentindo com as ausências da Paula e do João foi, ao mesmo tempo, uma espécie de estágio de habituação e de conformismo para o que viria a acontecer.

Só hoje me dei conta de que esse vazio vai ser para sempre. Só hoje, quando ao descer as escadas passei à porta de sua casa e vi centenas de sacos e caixas a serem transportados dali para fora. O João vai-se embora! Já sabia, claro. Mas foi uma estranha sensação, acompanhada por um aperto no peito que me fez sentir que deveria ter feito mais! Não sei o quê e provavelmente não havia nada em concreto de que o João e a Paula necessitassem. Mas senti-me triste e arrependido… de nada em concreto… apenas isso, triste e arrependido de não ter feito mais qualquer coisa.

Um dia, quando chegava, tarde, de um jantar de trabalho, olhei para a varanda de sua casa e lá estava o João, sentado, cabisbaixo, como que adormecido. Não hesitei, chamei-o e perguntei: “Ei, tens uma cerveja?” Ali ficámos pelo menos umas três horas. Eu a beber cervejas e o João a falar, quase que ininterruptamente. E rimos. Rimos muito mesmo! É impossível não rir com o João! O João é um tipo divertido, animado e bem-disposto, com um sentido de humor sublime. E que saudades tinha de uma boa gargalhada do e com o João.

Falámos de tudo um pouco. Da Paula, claro está, das histórias de 11 anos de vizinhança, de política e do futuro! De um futuro que o João terá de reescrever agora, sozinho, sem a Paula. Não sei se lho disse claramente porque estava tarde e estava difícil sair dali. Não queria ir embora e acho que não tive a coragem de lhe dizer. Mas acho que era isto que me faltava fazer. Acho que é por isto que, hoje de manhã, senti que devia ter feito mais.

A vida continua, João. Por mais difícil que se torne o caminho, ela continua. Não imagino o vazio que a Paula te tenha deixado, mas a tua força, a tua determinação, o teu bom humor e a pitada de loucura que todo o homem bom tem dentro de si precisam de ocupar esse vazio. Desculpa-me a frieza e a frontalidade, mas era o que te queria dizer. Vou sentir a tua falta e de trocar dois dedos de conversa no hall de entrada do prédio. Mas a vida continua.

A vida que tu e a Paula partilharam comigo jamais será esquecida. Mas há uma nova vida para viveres e que precisa de ti. Um grande bem-haja.

Escreve à quinta-feira