Por muito mais razões que aquelas que enchem as comunicações dos nossos dias, a eleição de Mário Centeno é apologética, não das políticas de esquerda que implementou nos seus Orçamentos, mas sim da habilidade política e técnica de, parecendo governar à esquerda, ter aplicado a receita neoliberal (na concepção deturpada das esquerdas cá do burgo) mais eficaz e precisa da nossa história de objecto dos pactos de estabilidade e dos limites às execuções orçamentais impostos pelos tratados europeus.
Podia de certa forma ser profético da legislatura com Centeno, ou à Centeno, o incontornável conflito entre a sua obra académica e os postulados que defendeu, desde logo sobre o efeito do aumento do salário mínimo na economia do país, e as políticas que logo de seguida sufragou como ministro das Finanças.
Será, porém, esta absoluta indiferença em relação ao conflito entre as posições intelectuais de fundo e a práxis política diária que pode, ao fim de três Orçamentos, dar-nos a dimensão política do (antigo) desconhecido que vai ser presidente do Eurogrupo.
É da espuma dos nossos dias esta ambivalência imediatista que existe entre a realidade dos factos e a que resulta da sua comunicação, e, aqui, Centeno soube interpretar como ninguém esta realidade, e ninguém como ele foi tão forte nesta relativização dos factos do dia-a-dia.
Até Centeno, nunca ninguém tinha ousado levar tão longe as margens do Orçamento do Estado, reduzido à condição de documento programático onde se cumpriram quase todas as medidas negociadas com os partidos da maioria, a bem da estabilidade da maioria de apoio ao governo. Em virtude das cativações recorde que este geriu draconianamente, qualquer semelhança entre a despesa orçamentada e a efectivamente gasta passou à condição de improvável coincidência.
E esta é a habilidade maior de Centeno: a de, confrontado com a obrigação de entregar resultados de sinal diametralmente oposto, como o são devolver (alguns) rendimentos enquanto se apregoa o fim da austeridade e cumprir as regras da despesa europeia, tê-los entregue ambos em toda a linha.
Nesta equação, naturalmente, não entra o custo final das opções tomadas, os efeitos práticos de degradação diária dos serviços públicos que tal necessariamente implicou e a criação de um modelo austeritário diferente e mais cego, ou aquilo que estas opções podem ter comprometido nas reformas que pudessem sustentar o crescimento económico de longo prazo que, entretanto, desacelera, cuja definição é política e pertence ao PM e aos seus apoiantes.
Ao Eurogrupo – a tal organização acusada de ser um bastião do neoliberalismo europeu, e que é a mesma que, de forma igualmente draconiana, negociou ou esteve por detrás das negociações que permitiram o resgate de Portugal e da Grécia, negociando os pacotes de ajuda e as medidas austeritárias a implementar – é-lhe absolutamente indiferente a proclamada política de devolução de rendimentos que o governo reclama ter feito.
Já não o será o facto de, baseado no apoio de dois partidos que abominam a ideia do euro e do Tratado Orçamental, tais medidas terem sido implementadas sem o beliscar, e até mesmo para lá, não da troika, mas das metas orçamentais dos tratados.
Com efeito, e como é evidente, o que seduz o Eurogrupo é esta espécie de quadratura do círculo e a tal habilidade de pôr um governo apoiado pela extrema-esquerda a implementar, de forma continuada e efectiva, medidas de finanças públicas de cariz neoliberal em estrita e fiel obediência aos mandamentos do euro, moeda pela qual zela.
Ou seja, o que cativa em Centeno é muito mais a sua vertente de executante do que qualquer dimensão política ou de visionário das esquerdas. Fica, aliás, a ideia, que o Eurogrupo acompanhará, de que Centeno, como já havia sido dito, tem estes seus princípios e uns tantos outros, caso estes não sirvam.
Assim, esta outra leitura a fazer que porventura não escapou aos ministros do Eurogrupo foi a do facto que para entregar os tais resultados aos políticos nacionais, para manter satisfeita a clientela dos partidos de apoio à solução governativa, e europeus, no que diz respeito às metas dos tratados, o ministro das Finanças português, nas tais políticas draconianas, foi implacável e cirúrgico e agiu com o foco essencialmente centrado no resultado pedido, cativando despesa e aumentando receitas, com a especial qualidade de tê-lo feito enquanto punha em simultâneo os partidos de esquerda a aplicar a “sua austeridade” e reduzia défice para dentro dos limites dos tratados, e dizendo ainda que não só gostaram como ainda aclamam.
Do meu ponto de vista, e não concordando com muitas opções e políticas adoptadas e com muitos dos efeitos das escolhas que fez, tenho de reconhecer em Centeno esta capacidade de entregar resultados difíceis sem grandes hesitações de como lá chegar e cumprindo os guiões recebidos sem hesitar. O Eurogrupo percebeu-o e, na minha opinião, é este relativismo moral a chave da sua eleição.
Advogado na norma8advogados
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Escreve à quinta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990